Vale a pena ler o discurso completo que Xi Jiping fez perante a praça Tiananmen repleta de funcionários, militares e muito povo. Apesar do tom glorioso, não deixou de se referir, en passant, à China do antigamente, antes do Partido tomar as rédeas do poder. Porque a verdade é que toda esta ânsia de superioridade mundial ainda é um ressabiamento, justíssimo, aliás, do século em que o país foi uma vítima à mercê dos impérios da altura.
Para não ir mais atrás, basta recuar até à Primeira Guerra do Ópio, em 1840. Na época, a China vivia na decadência da dinastia Qing, que reinava desde 1644. O Império Britânico estava no seu auge e seguia um padrão económico próprio; quando não tinha uma matéria-prima nos seus territórios, roubava-a onde existisse e desenvolvia-a na colónia mais apropriada. Foi assim com a borracha, por exemplo, cujas sementes foram surripiadas do Brasil e plantadas na Malásia. Também aconteceu o mesmo com o chá, que roubaram da China e criaram na Índia. Mas consumiam mais chá do que conseguiam produzir e compravam-no aos chineses, pagando-o com o ópio que vinha do Afeganistão. O imperador Daoguang não gostou de ver a sua população dizimada pelo vício e apreendeu a mercadoria nos entrepostos ingleses. O Império enviou a sua armada e tropas, infligindo uma pesada derrota aos chineses que culminou com o Tratado de Nanquim que favorecia as potências ocidentais e isentava a importação de ópio de taxas alfandegárias. Durante as décadas seguintes o país ficou ingovernável, com guerras civis localizadas que, segundo alguns historiadores, resultaram em 40 milhões de mortos. Numa guerra com o Japão sofreram outra derrota humilhante e perderam a ilha da Formosa (Taiwan), em 1895. Até que em 1912 os militares, chefiados por Sun Yat-sen, organizaram uma revolta que culminou com a implantação da República.
No entanto, o país continuava ingovernável, com as regiões disputadas por senhores da guerra e um governo em Pequim, reconhecido internacionalmente, mas inoperante. No final da década de 1920, outro militar, Chiang Kai-shek, dirigente do partido nacionalista Kuomitang, conseguiu reunificar o país. Mudou a capital para Nanquim e tentou transformar a China num estado “democrático” moderno, ainda segundo os planos de Sun Yat-sen.
Em 1927, o Partido Comunista, fundado seis anos antes, já teve força para fazer uma rebelião; foi a primeira das muitas guerras civis entre comunistas e nacionalistas, que se prolongaram de forma intermitente até 1949, apenas interrompida por mais uma humilhação: a invasão e brutal ocupação da China pelo Japão, entre 1937 e 1945.
Logo que os japoneses se renderam, em 1945, Mao Tsé-tung, apoiado pela União Soviética, e Chiang Kai-shek, apoiado pelos Estados Unidos, recomeçaram as hostilidades, num país completamente destruído. As forças do Kuomitang perderam e refugiaram-se na Formosa.
Quando a 1 de Outubro de 1949, Mao proclamou a criação da República Popular da China, tinha pela frente um espaço imenso completamente à deriva, sem indústria, nem comércio, nem estruturas administrativas, nem nada que se possa assemelhar a um país. Não surpreende, e até faz sentido, que Xi Jinping, em 2021, diga que foi o Partido Comunista que transformou essa massa disforme numa potência que até acaba de mandar uma sonda a Marte.
Ele também disse, e é verdade, que uma das “virtudes” do partido foi adaptar-se aos tempos, evoluindo constantemente. Só que a adaptação não foi pacífica nem virtuosa.
Mao Tse-tung, até hoje mitificado como figura seminal do sucesso chinês, foi um ditador teimoso e temerário, que fez experiências várias – caminhos que levaram à morte de dezenas de milhões de pessoas, geralmente de fome, e arrasaram o legado cultural de séculos passados, quando a China inventou a pólvora, a porcelana, a filosofia confunciana e muitas outras contribuições para a Humanidade. Não interessava o passado; era preciso criar um país novo, custasse o que custasse. Algumas experiências ficaram para a História, não só pelo trágico como pelo ridículo, como quando tentou produzir aço em pequenos fornos artesanais, ou pôs os camponeses a abanar as árvores dias seguidos para que os pardais não comessem as colheitas. Para não falar na Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, que privou uma geração dos conhecimentos mais básicos e vitimou milhares de “intelectuais” – professores, cientistas, homens que transmitiam a cultura. Apesar de se considerar um messias do comunismo, Mao criou um sistema de castas – distinguindo os camponeses dos citadinos – que perdura até hoje. Na década de 1950 invadiu e anexou o Tibete, destruindo uma cultura milenar; e só não tomou Taiwan porque o exército popular não tinha meios de atravessar o estreito que separa a ilha do continente, mas conseguiu que a República de Taiwan fosse proscrita no cenário internacional.
Só em 1976, com a morte de Mao e a escolha de Deng Xiaoping como chefe supremo é que a China infletiu a sua política e começou realmente a entrar no mundo real da economia e das relações internacionais. Deng, que tinha sido perseguido e preso por Mao, foi um comunista pragmático, responsável por uma decisão fundamental: manter a ditadura política e simultaneamente liberalizar a economia. (Fez exactamente o oposto da União Soviética, que democratizou a política e manteve o controlo da economia. A diferença de resultados está à vista.)
Há muitos partidos centenários em todo o mundo, de todas as tonalidades políticas, mas só dois partidos, ambos comunistas, se mantiveram 72 anos no poder: o russo e o chinês. Contudo o russo não chegou aos 73 e o chinês está para lavar e durar. Com Xi Jinping, a China entrou na sua fase imperial, a caminho de se tornar o país dominante no mundo. Os analistas discordam sobre quando isso acontecerá, mas concordam que é inevitável. O “comunismo à maneira chinesa”, como Xi tanto gosta de se referir, parece uma fórmula de sucesso. Os 92 milhões de membros do partido certamente que o afirmam, por convicção, medo ou interesse. Mas a China tem mil e quatrocentos milhões de habitantes e não se sabe o que realmente pensam, até porque não tem permissão de se manifestar...
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