1. Centro histórico de Lisboa. De um prédio em obras — mais um — sai um carrinho de bebé e logo a seguir um rapaz. Dentro do carrinho vem Mira, quatro meses, provavelmente a única bebé luso-brasileira com várias mães índias no activo, mães-de-leite, mesmo. Quem empurra o carrinho é pai dela, tem 33 anos, a mesma cara de rapaz com que na década passada ganhou a única Palma de Ouro portuguesa no Festival de Cannes. E atrás dele sai a equipa do seu último filme, “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos”, também na Selecção Oficial de Cannes 2018 (secção Un Certain Regard).
Uma equipa-família, porque assim se fez este filme, “de chinelo, no meio do mato”, co-realização de João Salaviza e da brasileira Renée Nader Messora. Começaram por ser amigos, depois parceiros de trabalho, depois namorados e agora pais de Mira. Pelo meio, Renée levou João para a terra indígena dos krahô, 300 mil hectares no estado de Tocantins, interior do Brasil. Lá mora o casal adolescente do filme, Ihjãc Krahô e Kotô Krahô. E também Vítor Aratanha, que fez o som directo, e ajudou na tradução.
Aqui estão todos eles ao lado do elevador da Bica, Ihjãc e Kotô acabados de acordar neste estranho mundo, andaimes por cima da cabeça, tuk-tuks e o resto do circo em volta. Nunca tinham andado de avião. Nunca tinham ficado numa cidade grande. Da aldeia indígena para Lisboa, e daqui para Cannes, incluindo a foto de cerimónia na passadeira vermelha. Esperem para ver como, vai valer a pena.
Mas, para já, dormiram muito, estão esfomeados. Vamos ao Cais do Sodré, em busca de pequeno-almoço.

2. — O Ihjãc nem acreditava que eram dez e meia quando acordou — diz João, a caminho.
Ihjãc sorri, com os seus olhos oblíquos, acena que sim:
— Na aldeia, acorda cedo.
Fala um português breve e doce, como se traduzisse num verso o que está a pensar. Tem 16 anos, mas não os 16 anos dos brancos. No mundo krahô é adulto. Tinha 12 quando se juntou com Kotô e fizeram Tepto, o filho de ambos. Tepto também aparece no filme mas não vai a Cannes, ficou com as suas outras mães. Tia é outra mãe, e quem tem leite amamenta.

 Vítor vai no segundo filho krahô. Natural de Brasília, formado em Ciências Sociais, foi trabalhar num posto da Funai, a fundação governamental para os povos indígenas. Esse posto ficava em Itacajá, a cidadezinha mais perto da terra indígena krahô. Vítor acabou a casar com uma krahô, deixou a Funai. Entre contar-me isto e começarmos a falar de missangas, já estamos sentados numa esplanada cujo nome não queremos lembrar.
Missanga é todo um assunto. Vítor explica que os krahô só gostam mesmo de uma de vidro que se chama Preciosa, e vem… da República Checa. “Não gostam das chinesas”, que são as que inundam as lojas. E depois há as contas feitas de sementes indígenas, furadas uma a uma, como as que Vítor usa no pulso (“é o meu anel de casamento, minha esposa tem uma igual”), João usa no pescoço em duas voltas e Renée no pulso em muitas voltas. Calha que Ihjãc e Kotô são os únicos à mesa que não têm missangas. Mas quando Ihjãc tirar o casaco, vão aparecer os seus braços cobertos de jenipapo, a tinta negra que os indígenas usam em pintura corporal. Não poderá ser reposta na viagem porque ficou retida num dos aeroportos.

3. A propósito de aeroportos, querem saber como se vem da aldeia indígena de Pedra Branca para o Cais do Sodré? Vítor explica. Saiu da aldeia com Ihjãc e Kotô às 5h da manhã de dia 7, guiando o seu carro, 25 km de estrada de terra até Itacajá, a tal cidadezinha. A partir daí são mais 320 km (“que parecem 600!”, diz Renée) até Palmas, cidadezinha maior. “Quase tudo campo de soja para dar ao gado e exportar para a China” diz Vítor. O desastre do interior brasileiro, a monocultura, o agronegócio que destrói terras indígenas e o planeta. Tocantins é um dos estados perdidos para este lobby. “Também tem cana de açucar para a usina de álcool.” De Palmas, voaram para Brasília, onde descansaram em casa do pai de Vítor. De Brasília voaram para Recife, e de Recife para Lisboa, onde aterraram na manhã de dia 9, 48 horas depois de partirem.
Três aviões, logo na estreia de Ihjãc e Kotô. O pior foi mesmo o primeiro. “Quase morri de medo”, diz Ihjãc. Na outra cabeceira da mesa, Kotô, mais tímida, pouco fala. “Ela quase gritou quando foi para levantar”, diz Ihjãc, olhando para ela, e Kotô ri. “Mas desce de boa”, remata ele. Quer dizer, a aterrar já não custou. E ver lá do alto, das nuvens, como os pássaros? Ihjãc sorri, abana a cabeça. “Não fiquei olhando duro.” Quer dizer, fixo. Porque dava medo.
Agora, vão descansar em Lisboa uns dias. João e Renée voam com Mira para Cannes já amanhã, sábado. Vítor, Ihjãc e Kotô partem na terça. O filme passa no dia seguinte, 16. Voltam todos juntos para Lisboa a 19.

4. Mira está tão esfomeada como os grandes. E, enquanto João e Reneé vão buscar croissants mistos e sumo de morango, ela mama feliz no peito de Kotô. “Mira mama geral!” Ou seja, não recusa nenhum peito. João e Renée querem que ela cresça o mais possível na aldeia indígena, que “pegue muito bicho-de-pé”, diz Renée. Bicho-de-pé também é todo um assunto. Vítor levanta literalmente o seu pé para mostrar um alto no calcanhar: é onde se alojou o bicho que vai ter de tirar em breve. Uma larva que entra no pé, na mão, nas nádegas, enfim, onde o corpo pousar, e depois cresce lá dentro até ao tamanho de uma ervilha. Dá uma dorzinha, e comichão. É preciso cortar. “Eu peço sempre para cortarem os meus”, diz João. Todos já tiveram muitos. Acontece o tempo todo, lá na aldeia.
Espalhados por várias aldeias, os krahô são 3500. Em Pedra Branca moram 500. O próximo filme de João e Reneé, já em preparação, vai passar-se lá também. Pedra Branca tornou-se uma das casas deles. Foram “baptizados” lá, receberam os seus nomes indígenas, Wýhwý (João), Patpro (Renée) e Piná (Mira). Os nomes são essenciais, para que as pessoas os relacionem com um grupo de parentes. Ao serem “baptizados” passam a ter pais, irmãos e filhos krahô. “Eu, por exemplo, sou ‘irmão’ da Kotô”, diz João. “Eu tenho três ‘filhos’”, diz Renée. É simbólico, faz parte dos rituais.

5. A vida indígena é altamente ritualizada, e o filme centra-se num ritual: a festa de fim de luto. Quando Renée levou João para a aldeia (onde ela já estivera por temporadas) conheceram um rapaz a quem o pai tinha morrido. O espírito do pai aparecia-lhe, e outros espíritos, duplos, desdobramentos, aquilo a que os krahô chamam “mẽcarõ”. O que se passava, na leitura indígena, é que esse rapaz estava a ser chamado para se tornar um pajé, alguém que cura, que fala com os espíritos. Mas o rapaz não queria tornar-se pajé, tinha medo desse poder, dessa responsabilidade, e lutou contra o chamamento. A partir daí, João e Renée construíram a história do filme. Ihjãc faz o papel do rapaz, que não é ele. Essa é a parte, digamos, ficcionada. Mas todas as relações de parentesco do filme são verdadeiras, a mulher de Ihjãc é mesmo Kotô, a mãe, os irmãos. E todas as cenas colectivas de festa, de ritual são documentais, foram registadas pela câmara de João e Renée enquanto aconteciam e aproveitadas para o filme.
Antes do filme, houve a relação de João e Renée com os krahô. Dessa relação veio a ideia de um filme, inicialmente pensado como um documentário. Depois, durante o processo, eles perceberam que ficariam mais próximos da verdade se usassem alguns mecanismos ficcionais. “O que nos interessa é a verdade, não a verosimilhança”, diz João, de uma forma desconcertante para mim, de tal forma acredito nisto, com estas mesmas palavras. O mais comum é a ficção defender o contrário, querer ser o mais verosímil possível para “parecer” verdade.
Então, “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” não terá género. É documentário e é criação. É um filme com os krahô, na terra krahô, falado em krahô. João cita uma frase, que ele não está certo que seja de Manoel de Oliveira: “O cinema é um ritual que serve para filmar outros rituais.” Uma ideia em que João e Renée se revêem. O cinema foi o ritual que lhes permitiu dialogar com outros rituais. E houve muita coisa que só perceberam na montagem, na tradução, camadas filosóficas que emergiram ao esmiuçarem os diálogos krahô, porque era preciso legendá-lo, primeiro em português, depois em francês e inglês. Ou seja, o cinema, nas suas várias etapas, acrescentou camadas, desdobramentos à relação deles com a aldeia. Sendo que o cinema só aconteceu porque, à partida, existia uma relação.

6. Sempre que Ihjãc fala, a esta mesa do Cais do Sodré, duas palavras aparecem muito: “cupẽ” e “mẽhĩ”. A primeira são os estrangeiros (não-indígenas). A segunda são os índios. Primeiras impressões de Ihjãc sobre Lisboa:
— Tem muito “cupẽ” aqui. E diferentes do que estamos acostumados. E as casas… não é igual a Itacajá. Casas boas… mercados… — Que no Brasil são os supermercados, as mercearias.
Ihjãc aponta a árvore no passeio, nunca viu uma igual. Tudo bem diferente.
Vítor conta uma história de quando foi com a sua família krahô a São Paulo. O que mais impressionou o seu enteado de nove anos não foram os arranha-céus. Foi tanta gente dormir na rua enquanto outros tinham tanto. Para uma criança krahô, a desigualdade era a coisa mais gritante, ao pisar pela primeira vez uma megalópole. E com o filho mais velho de Vítor, de três anos, aconteceu isto: no Rio e em São Paulo encheram-no de presentes. Pois ele “mapeou todas as crianças da aldeia” a quem ia dar as coisas. O primeiro pensamento foi distribuir. “Todos os objectos circulam, ninguém acumula. E não tem fome na aldeia, porque ninguém nega comida para o outro.”
Não quer dizer que hoje os jovens já não tenham, por exemplo, telemóveis.  Mas acabam a circular também, tornam-se moeda de troca.
No filme, há uma cena em que Ihjãc, que fugiu para a cidadezinha, liga para a aldeia. Está a ligar para onde? Para o telefone público. No meio da aldeia há um “orelhão”. Quem passa, atende.

7. Atravessamos a estrada para ir ver o Tejo no novo Cais do Sodré, pejado de turistas. “Bonito”, aprova Ihjãc. Kotô apanha sol. Para eles, está frio. A moreníssima Mira continua sorridente, com o seu redemoinho igual ao pai, terceira geração luso-brasileira na família de João, uma família de cruzamentos singulares, desde judeus de Lodz ao Ceará. Já Renée tem raízes nos maronitas do Líbano. Então, João disse à sua avó judia, quando chegaram a Lisboa: “Vês? Acabei a casar com uma árabe.” E a avó falou iídiche com Mira mal a teve nos braços. Portanto, judeus, árabes, portugueses, brasileiros, indígenas, todos ligados, mirando a foz do rio de onde há 518 anos partiu Cabral com os brancos, os “cupẽ” que pela primeira vez viram os indígenas do lado de lá do Atlântico Sul.
Não há como um filme com todos eles não ser político, quando os povos indígenas continuam a ser ameaçados no Brasil. E Cannes é um megafone. “Um filme feito neste contexto, sem concessões, nem espartilhos, de chinelos, no meio do mato, que chega a um festival como Cannes e entra sem nenhum tipo de lobby, isso é incrível”, diz João. “Só a presença destas imagens será incrível.” Renée acrescenta: “E um filme que trata de uma subjectividade indígena. Porque, em geral, quando os indígenas são mostrados, é pelo exótico.” Ambos sabem que podem passar temporadas com os krahôs mas isso não os faz índios. “Sabemos de onde vimos, que não somos índios” diz João. “Mas o encontro que este filme gerou é diferente. Estas vozes, esta língua, esta subjectividade, o Ocidente vai ter de dialogar com elas. É uma luta dentro de um espaço de poder simbólico. Ocupar um espaço que legitima umas imagens em relação a outras.” E de Cannes repercutir para o Brasil, onde “já nem há vergonha em dizer que índio bom é índio morto”.
Co-produção luso-brasileira, com a parte maior a vir do Brasil, “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” foi só o primeiro filme de João e Renée com os krahô. O próximo vai chamar-se “O Fim da Terra” e passa-se no tempo da ditadura militar. Os velhos lembram-se. Há velhos que ainda guardam memórias do massacre dos anos 40, quando os fazendeiros chacinaram indígenas.

8. A propósito de velhos, e para terminar, em Pedra Branca “todos os velhos namoraram com todos”, diz João. “Não havia ciúme. É ou não Ihjãc?” Ihjãc ri, acena que sim: “Antigamente era assim. Agora é difícil. Se tu malandras, já era.” Mas a verdade é que toda a gente malandra. Ihjãc pode. E Kotô não pode? “Pode”, acena ele. “Até já ouvi uma historinha aí…” João ri. Kotô está afastada, com Renée. Ihjãc remata, sorrindo: “Mas eu sou bonzinho…” Vários povos indígenas mantêm uma série de restrições às mulheres, nomeadamente nos mais importantes rituais. Mas entre os krahô (que fazem parte dos povos jê, não-tupis) os rituais são partilhados. E a relação com a ideia de chefia, com estruturas de estado, ainda mais remota do que entre os tupis. João resume assim: “Os krahô são anarquistas.”