Há dias passava por uma zona verde no centro de Lisboa, num belo dia de sol, e reparei num cenário cada vez mais usual. Várias pessoas sentadas, individualmente mas também num pequeno grupo, e quase todas estavam com o telemóvel na mão. Se atendermos ao cenário que as envolvia, encontrávamos frondosas árvores, bonitos patos que por ali descansavam nas suas sombras e um lago bem tratado que percorria o jardim. Toda a envolvência parecia ser convidativa para uma pausa regeneradora a meio de um dia da semana e com uma envolvência bem convidativa. Mas, na realidade, o telemóvel ocupava o espaço central, cativando, entretendo, informando, viciando. E este momento deixou-me mais pensativo e preocupado por todos nós.
Não foi assim há tantos anos que naquele mesmo jardim, encontrávamos também pessoas aquela hora do dia mas que tinham uma vivência bem distinta. Falavam, partilhavam, olhavam uma para as outras, chamavam a atenção e metiam conversa, riam-se, tocavam-se, deitavam-se à sombra das tais árvores e observavam o céu, sentavam-se num dos bancos e, simplesmente, olhavam em redor. Todo aquele jardim transbordava vida. Real.
A pandemia impediu-nos de nos relacionarmos proximamente durante anos e o digital ocupou ainda mais a nossa vida. Na altura, foi, para muitos de nós, uma boa ajuda para superar os tempos difíceis de clausura e distanciamento social. Mas este longo período também nos retirou algumas capacidades sociais – quem de nós não sentiu nessa altura cansaço e maior dificuldade em comunicar e interagir com as outras pessoas? A falta de “prática social” passava a sua fatura e quando a pandemia terminou, há muito que estávamos ávidos de contacto com as pessoas e com o mundo. Aquela liberdade teve um sabor inesquecível.
No entanto, a disseminação do teletrabalho (com todas as vantagens que pode trazer também), dos ecrãs, das apps que nos permitem quase tudo, das redes sociais cada vez mais personalizadas a cada pessoa, o crescimento da inteligência artificial e de todas as facilidades digitais que temos ao nossos dispor a qualquer momento, tem-nos tornado mais imersos “na nossa bolha”. Mais sozinhos. As consequências são inúmeras: estamos com maior dificuldade em lidar com a frustração e em aguardar pelas coisas boas (o digital permite um sem número de estímulos e actividades prazerosas imediatas que nos inundam de dopamina – neurotransmissor ligado ao sistema de recompensa – e que “obriga” o cérebro a desligar os seus receptores devido à homeostase, causando alterações de humor, ansiedade ou desconforto generalizado, sem esquecer a desfrontalização que poderá ocorrer pelo uso excessivo). Este processo está presente nas diversas adições e é, actualmente, um sério desafio à Saúde.
Sempre gostei de tecnologia e considero espantosa a sua evolução. E o digital traz-nos muitas coisas boas e vai trazer. Reconheço assim a sua pertinência e faz parte integrante e regular do meu dia-a-dia. Aquilo que quero sublinhar é a progressiva troca que podemos encontrar do real para o digital em que o usamos para conhecer pessoas, para encomendar comida, para nos informarmos, para aprendermos, para trabalharmos, para cuidarmos de nós próprios e de outros, para jogarmos, para investirmos, para passarmos tempo, para adormecermos, para comprarmos e trocarmos, para pesquisarmos, para tanta e tanta coisa. Muitas das nossas necessidades vão sendo preenchidas pelo digital e já não vivemos sem ele.
A cultura do imediato e do personalizado faz-me também pensar na evolução e na sobrevivência da nossa espécie. E na quantidade de sofrimento, privações, ameaças, desafios que fomos enfrentando até aos dias de hoje. Lidar com o desconforto, com a frustração, com a dor foi essencial para a vida humana. E não sei se tornar tudo mais fácil, rápido, personalizado não nos está a deixar a quase todos, paradoxalmente, mais insatisfeitos. E angustia-me pensar num futuro próximo onde estamos repletos de tecnologia e vivemos exclusivamente através dela como se se tratasse de um episódio da série Black Mirror.
O momento presente é essencial para a nossa Saúde Mental. Estarmos plenamente no aqui e agora permite-nos usufruir da existência, das pessoas, das paisagens, da restante vida, dos elementos. Os “prazeres simples” têm um impacto mais que estudado na nossa estabilidade e na nossa sensação de felicidade e em que nos nossos cinco sentidos têm especial utilidade. É tão bom não fazer nada, “só” estar e ser e não precisarmos do telemóvel para fazer tempo. O digital veio para ficar e, como referi, tem recursos muito importantes para a humanidade. Agora que precisamos, urgentemente, de controlar o seu uso (e não ele a nós) isso é inegável.
Termos momentos em que o usamos e outros em que estamos, apenas, a experienciar a contactar com o nosso mundo interno e com o externo. Em plena e íntima relação. Levantar a nossa cabeça do ecrã e sentir o que somos e o que nos envolve. Dá-me vontade de voltar ao tal jardim e por tudo isto em prática. Gostava que a si também!
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