Depois de várias estátuas lá fora — cá chega sempre tudo mais tarde – foi a vez da do Padre António Vieira aparecer pichada. Se a estátua é capaz de ser ligeiramente problemática, por mostrar precisamente o lado colonialista do Padre que aparece a tentar domesticar crianças indígenas? É capaz, é. Se dúvidas houvesse sobre o simbolismo disso, acabaram logo aquando da sua inauguração com uma manifestação de rejubilo de grupos de extrema-direita no local. Agora, será que, a propósito de toda a revolta – mais do que justificada – em tantos países contra o racismo sistémico, é eficaz para a luta vandalizar estátuas? À partida, não estou a ver como. Mas muito mais engraçado do que isso, são as reacções a tudo o que se tem passado. Enquanto se vê muita gente falar publicamente sobre o gravíssimo problema do racismo, a mesma gente que agora também condena o vandalismo, vê-se igualmente muita, e muita gente, que curiosamente nunca falou publicamente sobre o racismo, agora chocadíssima com a tinta na cara do Padre. Claro que não podemos logo dizer que sejam racistas, provavelmente têm só muito mais carinho e apreço por estátuas do que por pessoas que não sejam brancas.

E ainda há aqui outros pontos divertidos em tudo isto. Quem é que vandalizou a estátua? Terá sido alguém realmente em protesto anti-racista? Ou terá sido mais uma manobra da extrema-direita para descredibilizar uma luta fundamental para um país mais justo? É que também já se descobriu quem é que iniciou a petição para se derrubar o Padrão dos Descobrimentos, já evidentemente propalada e repudiada pelo Chegueiro-mor, e foi precisamente um senhor apoiante desse partido e difusor de notícias falsas. Curioso.

Agora, e não vos posso mentir nisto, a minha parte preferida de tudo isto foi a reacção de Chicão, também conhecido como jovem-beto-que-não-faz-ideia-do-que-anda-a-fazer-por-mais-reze-a-Deus-para-que-lhe-indique-o-caminho. Comparou o vandalismo à estátua com actos do Estado Islâmico. Isto não se inventa. Estamos perto do dia em que vai dizer que graffiti é pior do que o Holocausto.

Com tudo isto, e com grande apoio de alguma comunicação social, a verdade é que se desviou novamente o foco da luta anti-racista. Desviou-se da análise ao colonialismo português, da análise que é urgente fazer à narrativa heróica dos “descobrimentos”, que se insiste em endeusar sem se assumir todo o enorme lado de terror e genocídio que estes acarretaram, e de tudo o mais que urge ser feito para uma país justo para todos e que, aí sim, nos possa fazer mais orgulhosos dele.

Sugestões mais ou menos culturais que, no caso de não valerem a pena, vos permitem vir insultar-me e cobrar-me uma jola:

- Eixo do Mal: bom episódio esta semana.

- Esquerda e Direita: livro de Rui Tavares