1. ADIANTAR. É um espanto. Já sabia que era assim — em teoria! Na prática, fico mesmo de boca aberta. As crianças por volta dos cinco anos já sabem alguns milhares de palavras, que aprendem a conversar e a ouvir. E usam-nas de forma curiosa, afinando os significados e, por vezes, esticando um pouco a corda, o que é delicioso e explica por que razão a língua nunca fica igual em cada geração que passa. Dou um exemplo: o Simão viu um descapotável a passar e ficou admirado com um carro tão estranho. Apontou, a rir-se, e disse algo como «se chovesse, aquele carro não adiantava nada!». Rimo-nos com aquilo, mas aquele uso de «adiantar» com o significado de «valer a pena» ou «servir para alguma coisa» é parte da nossa língua, mesmo sem repararmos — embora dificilmente usasse a palavra para me referir a um carro…

2. ALIÁS. Cada pessoa tem a sua língua, ou melhor, a sua maneira de falar a língua. Abusamos de certas palavras, esquecemo-nos de outras, não há ninguém que saiba e use exatamente as mesmas palavras que outra pessoa. A maneira como usamos a língua é tão nossa e tão própria como as impressões digitais — todos temos um estilo próprio. E, no caso do meu filho, já se percebe que gosta muito de usar a palavra «aliás». Porquê? Não sei e não interessa. Aliás, interessa-me, mas pouco posso fazer que não seja reparar na maneira como o português sai da boca dele. A língua é de todos, mas é também de cada um, que a mastiga de maneira diferente.

3. SUPIMPA. Há quem tenha algum medo de palavras brasileiras, mas qual é o problema quando são apetitosas? Na boca do meu filho aparece agora (vá-se lá saber por que caminhos veio) um belo «supimpa», que às vezes substitui o «fixe» na sua maneira de falar.

4. BUGAR. Aliás, não é só essa a palavra de sabor brasileiro que ele às vezes usa. Também lhe aparece nos lábios uma outra palavra que imagino vir do lado de lá do Atlântico — «bugar». Não digo o que significa para deixar uma comichão de dicionário nos dedos do leitor. Foi assim que aprendi que os filhos também ensinam palavras aos pais.

5. «DIGUEM». Não há criança que aprenda a falar sem experimentar e, ao experimentar, errar. Aliás, continuamos a fazer isso pela vida fora. Depois, o cérebro lá vai limando a língua, acertando as conjugações, arrumando os verbos regulares e irregulares na respectiva gaveta. O Simão começou por dizer «eles diguem» em vez de «eles dizem». Agora, já acerta — excepto na letra de uma música que andou a cantar durante o Verão. Na cabeça dele, o verbo ficou assim gravado naquela música. Nós corrigimos, mas quem nunca aprendeu uma música com palavras que não são bem assim no original?

6. MEDO. Por alguma razão que não sabemos, o Simão ganhou medo aos cães. Gosta de os ver, mas de longe. Perder o medo de cães foi uma missão destas férias como aprender a nadar — nadar já está, já o medo dos cães tem de ser devagarinho… Curiosamente, quando se aproxima, explica a si próprio: «é para perder o medo».

7. ESTRUME. Esta foi uma palavra que ele aprendeu durante as férias. Passámos ao lado dum campo e lá nos entrou nas narinas o cheiro a estrume. Ele perguntou o que era aquilo… Quando lhe explicámos de que era feito o estrume e para que servia, começou a rir-se às gargalhadas. Enfim, já sabemos que as crianças se riem com tudo o que envolva «cocó». Espero que a professora não se assuste se ele usar a palavra «estrume» para explicar como foram as férias…

8. SAUDADES. Quando as férias estavam a terminar, a mãe disse-lhe qualquer coisa do género: «Estás quase a poder matar saudades dos primos!» Ele riu-se com o «matar saudades». «Mas não sabes o que quer dizer?» «Sim, é perder as saudades.» Sabe o que significa, mas por algum motivo, naquele momento, o «matar» junto às «saudades» fez-lhe umas cócegas quaisquer na cabeça e ele riu-se. Pois ontem, quando por fim reencontrou os primos com quem costuma brincar todos os dias, mas que já não via há 15 dias, explicou-nos a sua peculiar matemática das saudades: «Já não via os primos há 15 dias; agora vou demorar 15 dias a matar as saudades.»

9. CONTAR. No meio das conversas, ele gosta muito de contar. Ficou maravilhado ao perceber o sistema das dezenas e das unidades. Às vezes, pede-me para contar até cem em vez de lhe contar uma história (só às vezes). E eu conto, maravilhado com o encanto dos números para esta criança, que vai adormecendo a sorrir e a repetir baixinho o que ouve, como se os números fossem um feitiço para perder o medo.

10. FESTINHAS. Na verdade, a expressão completa é: «festinhas doces». É uma daquelas expressões só nossas com um significado muito concreto. Quando ele diz que quer «festinhas doces», está a pedir que lhe passe os dedos pelo pescoço e pelas costas para adormecer. E adormece, depois de mais um dia de muita correria e muita conversa!

O meu filho não é especial nisto. As crianças aprendem palavras com uma facilidade que me deixa de boca aberta. Aos seis anos, usam ativamente alguns milhares de palavras e compreendem muitos mais. São palavras de todos os tipos: bonitas, feias, proibidas, complicadas, simples — e é assim que deve ser. Aliás, conversar com as crianças, apontar o mundo e continuar esta aventura de contar o que imaginamos e ouvir o que os outros têm para nos dizer só nos faz bem: a eles e a nós.

É um dos prazeres que não terminam, mesmo quando voltamos de férias.

Conversemos, pois — e bom Setembro!


Marco Neves é tradutor, professor e autor do livro Doze Segredos da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.