Escrever sobre cancro pediátrico é sempre uma enorme responsabilidade.

Escreve-se sobre uma doença grave em crianças e em jovens que, sem saberem porquê (literalmente, dado que na maioria dos casos não se conhece ainda a origem do cancro pediátrico) veem a sua vida e a da sua família interrompidas por sessões de tratamentos, internamentos, vómitos, saídas das suas casas, ausências à escola, afastamento da família e dos amigos.

Ora, escrever sobre cancro pediátrico no dia 15 de Fevereiro é ainda de muito maior responsabilidade porque, sendo o Dia Internacional da Criança com Cancro, se pretende transmitir por palavras uma realidade dura e complexa, alertando a sociedade para os problemas existentes, as questões médicas, as políticas, os direitos, as de … São tantas as questões e dúvidas!

Devo então escrever sobre os pais? Sobre a impossibilidade de cada um de nós, que não teve um filho com cancro, entendermos alguma vez o que é a violência do diagnóstico? O assistir ao sofrimento de um filho? A arrogância dos que falam pelos pais e em seu nome sem entenderem que ninguém nunca entenderá realmente o que sentem os pais se não forem os pais?

Ou escrever sobre os filhos? As crianças que estão no hospital em vez de irem à escola? Que sabem tudo sobre cateteres em vez de saberem tudo sobre trotinetes? Ou os jovens que lidam com a imagem física impossível de processar? Ou os que descobrem que é tarde demais para poderem planear ter filhos quando têm apenas 15 anos e tanta vida pela frente?

Sinto que é sobre o que é essencial que devo escrever. E o essencial são os pais e os filhos que são engolidos numa vertigem e ainda assim tantas vezes fustigados com palavras agressivas como: A “luta contra o cancro”, os “heróis” “os guerreiros”.

E quem fica mais doente um bocadinho todos os dias? Esse está a perder? É um perdedor? Um falhado? “O meu filho é um falhado porque perdeu a luta contra o cancro?” — Pergunta-se legitimamente uma mãe.

Essas são as questões reais que são difíceis de discutir e de ultrapassar.

Depois temos as fáceis e, porque o são, talvez deva falar também sobre elas, para que a sua insignificância nos faça interrogarmo-nos sobre os motivos que nos levam a não as enfrentar e ultrapassar, dada a sua facilidade comparativa.

Vejamos algumas delas:

- A oportunidade de os pais poderem, ambos, acompanhar um filho doente, sobretudo em alturas críticas da doença. Um diagnóstico, uma recidiva, uma notícia de morte anunciada. Os pais exigem estar com os seus filhos com dignidade e podendo ausentar-se justificadamente dos seus trabalhos sem terem de arranjar desculpas fúteis ou optar sobre qual deles irá acompanhar o filho ou a filha.

Ou,

- Os filhos que querem finalmente comprar uma casa, sem terem de dizer a entidades, que nada têm a ver com isso, que estiveram doentes, quando existe uma lei que o salvaguarda, mas que ainda não foi regulamentada, pondo assim em causa um direito consagrado.

A regulamentação da lei que consagrou o direito ao esquecimento deveria ser uma coisa fácil.

E ainda:

- Os filhos podem querer ter filhos e por isso têm direito a ver a questão da fecundidade abordada e planeada desde o início dos seus tratamentos.

E algumas das que são ainda menores:

- A incompreensão que é dizer, ano após ano, que é muito, muito importante conhecer os dados sobre cancro pediátrico e nunca os conhecer.

A recente divulgação de alguns dados é uma provocação para uma realidade que atinge “cerca” de 400 casos novos por ano em Portugal.

Os dados existentes são parcelares, ou seja, não abrangem todos os casos. Também não abrangem todas as idades devido a uma tecnicalidade.

Parece que os dados assim parcelares existentes apontam para uma realidade que está a diminuir.

Ou seja, o cancro pediátrico, de acordo com esses dados está a diminuir.

Estará mesmo? É com base nessa premissa que se vão gerir e dimensionar os serviços de oncologia pediátrica? É com base nesse pressuposto que se vai orientar a investigação e que nos vamos comparar com o resto do mundo? E nesse “resto do mundo” o cancro pediátrico está a diminuir?

Parece que estou a fazer uma crítica a quem produziu esses dados, mas não estou. Eles representaram um esforço enorme e continuado de pessoas que admiro e respeito.

Mas o esforço não é suficiente para os que estão doentes e para os que vão sobreviver. Nem para os que ficarão doentes amanhã, dia 16 de Fevereiro, uma vez que é bem provável que em cada dia do ano exista pelo menos uma criança ou um jovem que, em Portugal, é diagnosticado com um cancro.

- Ainda no campo das questões fáceis, temos a menção “estratégica” sobre o cancro pediátrico feita no documento que contém a Estratégia Nacional de Luta contra o cancro 2021 – 2030, a qual não define uma verdadeira estratégia.

A Europa não tem olhado para o cancro pediátrico como uma prioridade e sabe que isso tem consequências e, embora pudesse ter ido mais longe, definiu que o Cancro Pediátrico deveria estar sob os holofotes, identificando algumas medidas importantes para que isso aconteça.

Portugal deveria ter, estrategicamente, definido algo de parecido, de forma a podermos trabalhar alinhados com os nossos parceiros, em prol de melhores tratamentos e melhor sobrevivência.

Se em 2023 nos concentrarmos nas coisas que são fáceis e que afectam a comunidade dos pais e das crianças e jovens com cancro, para o ano, se me for dado escrever sobre o tema,  talvez tenha a tarefa facilitada e possa escrever apenas sobre as questões difíceis.

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A Acreditar – Associação de Pais e de Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994 com o objectivo de minimizar o impacto da doença oncológica na criança, no jovem e na sua família. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, jurídico entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica.

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