É uma competição complexa, cheia de personagens, umas mais importantes do que outras, mas que juntas somam o que pode ser a manutenção do status quo republicano – logo, de Trump – ou a tomada do poder, pelo menos parcialmente, pelos democratas, vexando o Imperador. Porque Trump foi claro: “Eu não estou a concorrer, mas esta eleição é sobre mim.”

Num dos muitos inquéritos feitos à boca das urnas, cerca de um terço dos eleitores considera que a existência de Trump na Casa Branca é um factor importante na sua escolha, um terço diz que vota para que ele se volatilize, e o terceiro terço acha que as eleições são locais e não têm nada a ver com a presidência.

Esta divisão tripartida reflecte a confusão perante a profusão de cargos em disputa. Há que escolher os políticos locais (governadores e assembleias estaduais) e os representes locais no centro do poder, o Congresso.

Embora sejam estatais, as intercalares também sempre foram nacionais. Tradicionalmente, o partido do Presidente perde terreno; mas desta vez, graças ao esforço de Trump para que a competição seja considerada uma espécie de referendo às suas políticas e ao seu carácter, e à vontade dos seus desafectos de o ver achincalhado, foram as intercalares mais nacionais de sempre.

Considerando a força do efeito borboleta – aqui seria melhor chamado de efeito elefante –, a decisão eleitoral duma senhora que não gosta do bigode do seu Representante pode influenciar o equilíbrio de poderes mundial. As decisões do Presidente e a sua atitude têm reflexos na Europa – inimigos! –, na China – desonestos, porém simpáticos! –, na Rússia – governada por um tipo digno de respeito! –, no caldeirão do Médio Oriente e no mundo em geral.

Daí que a cobertura das eleições tanto possa ser vista na americana CNN como na inglesa BBC, na árabe Al Jazeera ou na gauleza France24. (Só os 4 canais básicos portugueses se mantêm alegremente distantes da questão.)

O planeta quer saber o que o espera; se um Presidente americano a todo o vapor, disposto a modificar a ordem mundial segundo critérios perplexantes, se um líder limitado pelo próprio sistema que o tornou possível.

À hora em que escrevo isto, os resultados estão praticamente decididos: os democaratas retomam a Câmara dos Representantes, continuam em minoria no Senado e têm menos governadores. Mas esta eleição diz muito mais do que o que os partidos ganham e perdem em números.

Por um lado, a onda populista Trump continua forte, como seria de esperar; não foi por acaso, nem pelo seu charme, que ele ganhou a presidência há dois anos; foi o resultado do desencanto do eleitorado para com o “sistema” da alta política de Washington, e pelo que hoje chamamos de “sentimentos identitários” dos grupos mais conservadores e religiosos. Ora esse desencanto é um fenómeno de longa duração que exigirá grandes mudanças no modo como se faz política, e que ultrapassa em tempo o tempo de Trump.

Mas, por outro lado, os trumpistas locais e estatuais tiveram de se adaptar ao ricochete que as mudanças nacionais e mundiais introduzidas por Trump produziram no eleitorado mais progressista e assustado com essas mudanças. Há uma tradição, vinda da fundação do país, de considerar a América como uma nação de imigrantes de todo o mundo e iguais oportunidades para todos. Pode não ter sido sempre assim, mas prevalece essa ideia, assim como a de que os Estados Unidos devem ser um exemplo para o mundo – ideias que Trump modificou com alarido e agressividade. Assim, e como lembra Erich Lach no “The New Yorker”, “primeiro, os republicanos recuaram em grande parte da agenda que têm vindo a propor nos últimos dois anos: a destruição do Obamacare” (o esqueleto de uma segurança social mais equitativa, à europeia) “e cortes nos impostos para os mais ricos e as grandes empresas, desenvolvendo uma estrutura intelectual que os justificasse. Nestas eleições, quase não tocaram nestes assuntos. Por outro lado, os democratas fizeram campanhas mais agressivas e extensivas a partes do país do que há memória. Na Flórida, Georgia, Texas e noutros estados, vimos progressistas declarados como candidatos, quando tradicionalmente eram muito mais moderados. (...) Também se levantou a questão se o Midwest” (os estados do interior, mais conservadores) “tinha mudado, tornando-se mais velho, mais irritado e mais nacionalista; afinal parece que a região voltou a inclinar-se para os democratas.”

Os republicanos viram-se perante um dilema: ou identificar-se com Trump, alienando o centro, os indecisos, que em última análise são quem decide as eleições, ou afastar-se dele, correndo o risco de enfurecerem os seus apoiantes mais dedicados. Trump, que participou activamente nas eleições fazendo dezenas de comícios, baseou a campanha no medo e ódio aos imigrantes, considerando a comunicação social como “inimigos do povo” e chamando aos democratas uma máfia. Alguns republicanos, como Brian Kemp, o candidato a senador pela Georgia, ou Kevin Cramer, candidato pelo Dakota do Norte, seguiram esta linha. Mas nas corridas para a Câmara dos Representantes, parte das quais ocorrem em distritos eleitorais suburbanos, muitos candidatos tentaram distanciar-se do Presidente, não criticando-o, mas não falando sobre ele. Para muitos republicanos, a opção de Trump de se fixar na questão da imigração, foi um erro. Seria melhor se falasse de economia e emprego, uma vez que os indicadores do seu governo são excelentes. Estas são as áreas que mais interessam ao eleitorado flutuante, o tal que é indispensável para ganhar.

(Para compreender melhor a complexidade do sistema eleitoral e muitas das opções em jogo, é recomendável ler este explicador publicado no SAPO24)

Até 1994, o Congresso norte-americano funcionava com uma relativa cordialidade; os dois partidos lutavam afincadamente pelas suas agendas, mas havia um acordo de cavalheiros em que o interesse nacional se sobrepunha às questões particulares. Nesse ano, o Representante Newt Gingrich, o primeiro a controlar a Câmara para os republicanos ao fim de 40 anos de domínio democrata, resolveu acabar com as boas maneiras e passar a fazer uma guerra política em que as conveniências partidárias se sobrepunham ao interesse nacional. (Há um artigo de Mckay Coppins no “The Atlantic” que relata o papel de Gingrich com precisão.) 

Depois, em 2009, com o surgimento do movimento ultra-conservador conhecido como Tea Party, institucionalizou-se a agressividade sem limites que haveria de levar à era Trump.

A radicalização dos republicanos levou ao despontar agora, em 2018, de uma radicalização equivalente no campo democrático. Pela primeira vez surgiram candidatos negros, abertamente LBGT e declaradamente socialistas. Houve um enorme trabalho de levar as minorias a registar-se – nos Estados Unidos, só vota quem está registado como eleitor, o que é facultativo. Os republicanos responderam, em muitos estados, criando enormes dificuldades à inscrição: as exigências são tantas e as picuinhices tamanhas, que os mais pobres e as minorias têm dificuldade em figurar nos cadernos eleitorais.

Vale a pena ler a avaliação que David Remnick fez no “The New Yorker” na véspera da eleição:

“Estas eleições intercalares decorrem numa atmosfera de enorme tensão nacional. Só poderia ser assim quando o actor principal do drama é Donald Trump, que prospera com a ideia de que a vida americana é um equilíbrio diário sobre o precipício, no qual o herói corajosamente se empenha em aprofundar a divisão entre os seus apoiantes e todos os outros, de que é melhor desmontar os acordos e as alianças internacionais e proteger os interesses empresariais em vez dos interesses dos trabalhadores e da natureza. Há indubitavelmente incontáveis interesses locais e regionais em disputa, mas, acima de tudo, esta eleição é um referendo sobre Trump, uma luta entre a sua base e aqueles que acham que é do interesse nacional estabelecer algum tipo de travão – uma nova maioria na Câmara dos Representantes, uma nova leva de governadores e legisladores estaduais – para travar a desintegração do estilo de vida americano e a destruição do espírito nacional.”

Pois, foi isso que esteve em jogo. Agora que sabemos o resultado, podemos perceber que a única alteração notável – a retomada da maioria democrata na Câmara dos Representantes – sendo importante, não será suficiente. A agenda legislativa de Trump será fortemente limitada e, num horizonte improvável, até poderá haver uma tentativa de “impeachment”. Mas os impasses continuam.

Por outro lado, o Partido Democrata viu surgir no seu seio uma nova corrente muito mais à esquerda e menos cordata. Terá de decidir até às presidenciais de 2020 quem será o seu candidato e qual corrente domina.

A bipolarização continua. O estado do país e do mundo não vai mudar tão cedo.