Não tive razão especial para emprestar a caligrafia ao título deste livro, a não ser o convite da minha muito querida amiga Pilar del Rio. A obra traz-me a memória de uma ocasião perdida. Explico: o drama teatral In Nomine Dei, de José Saramago, foi recriado pelo compositor italiano Azio Corghi na ópera Divara, que compusera já a ópera Blimunda, baseada no Memorial do Convento. Cantei a Blimunda em Lisboa e em Turim (um dos meus maiores sucessos). Mantive então um estreito convívio com José Saramago, que se tornou o início da bela amizade que perdurou até à sua morte. Fiquei também amigo de Azio Corghi, que deixou escrito o seu apreço pela minha «maravilhosa, apaixonada, vocalmente esplêndida» interpretação do papel de Bartolomeu de Gusmão. As possibilidades de enriquecimento afectivo e intelectual sempre foram para mim muito mais importantes do que as palmas no final de cada récita, e guardarei desses tempos da Blimunda a emoção de uma das felicidades maiores da carreira de cantor. Naturalmente, quando da estreia da Divara em Lisboa, fui convidado para a cantar. Por uma infeliz desorganização do Teatro de São Carlos, tal não aconteceu, e isso foi uma desilusão que não perdoo.

O Nobel para José Saramago, que confirmou uma consagração já evidente no reconhecimento internacional dos leitores, aconteceu entre as duas óperas. Premiou um escritor que não perdoa ao mundo não ser um paraíso de límpida harmonia. E que, ao observá-lo como um paul enlodado de miséria, poluído de injustiças, conspurcado de crueldade, não pactua com os comportamentos tépidos disso que hoje se chama o politicamente correcto, e que, cedo ou tarde, será depositado no caixote do lixo da História. Se Saramago se manifesta cívica e esteticamente insatisfeito, indignado, de consciência desassossegada, é porque escreve para nos desassossegar as consciências, para assolar as indiferenças, para aguilhoar as apatias, para chamar à lucidez a nossa cegueira. Ele reconhece: «Nós escritores, jamais mudaremos o mundo. A arte e a literatura não têm poder face aos exércitos». Mas isso não justifica uma desculpa ou um encolher de ombros alheado, porque tal atitude significa, na prática, ser cúmplice das injustiças e das misérias do mundo.

Não nos deixemos equivocar pela aparente gravidade ou sisudez da pessoa, pela crueza do assumido pessimismo ou virulência da crítica. Salvo alguns excessos, que o próprio reconheceu, a lição da obra é uma ética de respeito (a palavra tolerância é neste caso detestável, porque implica uma ideia colonial de superioridade), o apelo ao que o próprio designou como «revolução da bondade». Sempre li Saramago como uma prosa de simpatia — não no sentido do sorriso fácil que adorna plasticamente a aparência, mas no sentido etimológico, simpatia enquanto humaníssima compaixão pelo sofrimento dos outros, afinidade com os anseios dos desfavorecidos, genuína comunidade de sentimentos com as vítimas da injustiça e da maldade. Solidariedade que nasce de uma verdade histórica não dissimulável: séculos após séculos, nunca os humanos deixaram de se ofender com actos ruins de egoísmo, cinismo, tirania ou extermínio. E não há boas razões para crermos no milagre da conversão da espécie ao respeito e à bondade.

Ao longo dos anos, muitas vezes estive com o José e a Pilar em Lisboa e em Madrid, em Turim e em Lanzarote, na Blimunda e no funeral. A amizade tornou-se a razão mais imperdível dos corações. No centro de palavras certeiras, implacáveis, sempre me fascinou o menino de origem humilde, nascido numa aldeia rural, que cresceu descalço e só teve o seu primeiro livro aos dezoito anos; o rapaz que não frequentou estudos superiores e em bibliotecas públicas alimentou a sede imensa de saber; o homem que se transformou no exemplo improvável de que é possível alguém de tal condição social e de formação autodidacta chegar a ser, não só um mestre da língua portuguesa, mas um maître à penser de dimensão universalista.


Veja aqui o trabalho especial que o SAPO24 preparou para assinalar os 20 anos do Nobel