Maria Manuel Leitão Marques volta a ter em mãos uma tarefa que é daquelas em que deposito mais esperança neste Governo: a continuação da desburocratização do Estado ou, se quisermos utilizar a marca que criou há uma década, do Simplex.

Algum avanço já foi conseguido, mas passou essencialmente pela concentração física de serviços públicos e privados essencias nas Lojas do Cidadão, facilitando dessa forma a vida aos utentes, e pela "informatização" ou "webização" da burocracia, permitindo que muita da papelada seja tratada através da rede.

Mas isto não é verdadeira desburocratização. O sistema fiscal, por exemplo, está mais complexo do que nunca, apesar de podermos hoje lidar com essa complexidade sem ter que ir fisicamente a uma repartição. Repararam, por exemplo, no sistema e-factura, no tempo que cada um de nós tem que lhe dedicar para ter o benefício, na máquina que ali teve que ser montada para gerir aquilo tudo e na papelada, ainda que sem papel, que aquilo implica?

Agora podem ser PDFs e ficheiros, mas a obrigatoriedade dos papéis, dos procedimentos, das provas disto e daquilo continuam lá. Tal como continua lá a dificuldade que os serviços do Estado têm em falar uns com os outros. A Segurança Social continua a pedir-nos papéis que estão nas Finanças, estas pedem o documento que está nos tribunais, estes exigem que vamos aos Registos Civis buscar um papel para lhes entregar e por aí fora, num carrossel de papeladas capaz de levar ao extâse o mais doentio dos burocratas.

Tudo isto se construiu e se mantém em franco desenvolvimento em nome do cumprimento da lei, do rigor, da verificação, do combate à fraude e ao pequeno "golpe". Todo este edifício foi crescendo porque o Estado começa por desconfiar dos cidadãos - o que, sejamos honestos, em muitos casos até faz sentido.

O problema é que o aumento da complexidade da máquina afasta dela os cidadãos que dela precisam, tornando a sua vida num calvário, aumenta as possibilidade de a driblar e enganar por parte de quem tem essas intenções e, muito relevante também, faz com que sejam consumidos mais recursos a manter toda a papelada em funcionamento do que a servir os cidadãos - que é, já agora, a finalidade última disto tudo.

Um dos papéis fundamentais do Estado é a redistribuição de riqueza. Não vou aqui discutir se essa redistribuição deve ser maior ou mais pequena ou se os que mais têm deviam pagar mais, para os que menos têm receberem mais, ou ao contrário. O ponto não é esse. Não se trata de políticas mas sim de organização e burocracia.

O problema são as dezenas, centenas, de mecanismos, sistemas, subsídios, benefícios, taxas e taxinhas que o Estado continua a criar para fazer essa redistribuição. A começar no IRS - são dezenas as possibilidades de deduções e benefícios, muitos suspensos durante a austeridade - e a acabar na Segurança Social.

O menu "Formulários" do site da Segurança Social dá 217 resultados e acredito que muitos outros nem estão disponíveis online. Há sete tipos diferentes de subsídio de desemprego, seis tipos diferentes de apoio a cidadãos com deficiência, três mecanismos para acorrer à invalidez - a terminologia também não ajuda: pensão de invalidez, pensão social de invalidez, protecção especial na invalidez -, onze subsídios diferentes para maternidade e paternidade, seis relacionados com a morte e por aí fora.

As familias de menos recursos que têm filhos têm acesso ao abono de família, algumas ao Rendimento Social de Inserção, apoios sociais na escola além, claro, da dedução no IRS. Saberão as próprias entender-se no meio disto tudo? Agora, com este orçamento, o IMI também vai ser mais baixo para quem tem filhos. E os mais pobres vão beneficiar de uma taxa de audiovisual mais baixa, além do alargamento da tarifa social de energia. Não paramos, portanto, de construir o enorme edifício.

Repito: não estou aqui a discutir a justiça social de tudo isto nem do que se aqui investe mas apenas a estrutura kafkiana que o Estado constroi para atingir os fins.

No fim do dia, o objectivo de um Estado Social é garantir os meios mínimos de subsistência a quem não os tem nem os consegue, garantir o acesso à Educação, à Saúde, à Justiça e a bens essenciais, alguns culturais, à generalidade dos cidadãos, independendentemente de estes os poderem ou não pagar. E não me parece difícil que se tenha um sistema muito mais simples, justo, amigo dos beneficiários, transparente e mais barato de gerir do que estas centenas de portas, janelas e gavetas, taxas, taxinhas, subsídios e apoios. Garantindo que quem deles precisa os recebe na mesma ou até recebe mais, mas fazendo com que a carga burocrática que eles implicam seja muito mais reduzida.

Além de isto ser um inferno para os cidadãos potencialmente beneficários, duvido que alguém faça as contas - mas é bem possível que para alguns destes apoios seja muito maior o dinheiro gasto pelo Estado na máquina para os gerir do que o benefício que chega às famílias.

Fazer uma enorme limpeza neste labirinto burocrático, poupando na estrutura para libertar recursos, seria uma reforma que valeria uma legislatura.

A tarefa da ministra da Modernização Administrativa é grande e os principais opositores costumam sentar-se na sala do Conselho de Ministros e no Parlamento, como se vê. Neste Governo, nesta legislatura, mas também em todos os outros que por lá passaram no passado.

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