O parágrafo anterior resulta, não duma profunda análise minha, nem duma extraordinária capacidade de síntese, mas do uso prosaico do Copy+Paste – colar e copiar, sempre por intermédio das teclas de atalho. Não sou eu que defino assim a União Europeia, é ela própria quem o faz no artigo 2º do Tratado da UE. Os valores descritos são claros, e serão também caros a qualquer pessoa que se diga democrata.
Nunca estive avesso ao projecto europeu, mas compreendo certas justificações de quem se diz eurocéptico. Uma dessas justificações deve-se àquele admirável artigo 2º: é muito fácil ficar desconfiado quando os valores apontados são tão elevados; é muito fácil instaurar-se o cepticismo quando a harmonia idealizada, quase utópica, é projectada por um conjunto de estados historicamente falíveis. Para além disso, há muito cidadão comum que só pressente a Europa quando esta lhe dita quantos carapaus pode pescar, ou a que preço se vende um repolho - e essa supervisão aparentemente mesquinha tem pouco que ver com os tais ideais da dignidade humana descritos no Tratado da UE. Admite-se a desconfiança.
O que já me parece injustificável é que haja eurocépticos a insurgirem-se neste momento em que, por uma vez que seja, a União Europeia parece investida em fazer valer o artigo 2º do seu Tratado. Vive-se uma altura crucial na história, na preservação e na integridade desta União. É possível fazer vista grossa ao progresso advindo do projecto europeu – depende da irrazoabilidade de cada um – mas criticar a UE agora, no momento em que instaura um processo disciplinar à Hungria, é fazer vista grossa aos perigos que ensombram a democracia. Podemos ser cépticos, podemos ser sistematicamente do contra, mas se é para menosprezar a democracia assumamo-lo logo.
Talvez eu não tenha sido suficientemente explícito, então passo a afirmá-lo sem rodeios: este texto é muito crítico da posição do PCP face ao processo UE/Hungria. Não vou apelidar o PCP de “eurocéptico” porque não estou com disposição para eufemismos; de qualquer forma, o que me mói aqui nem é a tradicional bicada dos comunistas portugueses à União Europeia. A tradição verdadeiramente exasperante é outra: este hábito terrível do PCP de ser acérrimo apenas na defesa de democracias que não o são, ou que caminham para deixar de sê-lo.
A União Europeia aplicou o artigo 7º (que basicamente enuncia medidas políticas para garantir que o artigo 2º seja salvaguardado), e o PCP apelidou essa acção de “ataque à democracia” – ora isto força-me a lembrar, no mínimo, duas questões. A primeira prende-se com o próprio conceito de democracia; resumi-la ao sufrágio dum povo é ter uma definição ao nível de alunos da 3ª classe. Muitas vezes confunde-se o processo democrático com o dia das eleições - e embora essa seja uma parte fundamental, o que acontece nos dias subsequentes é tão ou mais importante para consolidar a democracia. Aqui entram conceitos como a separação de poderes, as liberdades civis, a transparência ou a liberdade de imprensa, e o estado eleito democraticamente deve zelar por tudo o que referi. E quando deixa de zelar? Ainda é democrático só por ter sido eleito? Em rescaldo, o número de ditaduras que floresceram do voto democrático conta-se pelos dedos de uma mão, mas é uma mão grotesca com largas dezenas de dedos.
Isto para lembrar que o “ataque à democracia” enunciado pelo PCP ignora (e mascara) de que falamos duma democracia atacada sim, mas internamente. A outra questão que esta posição dos comunistas me recorda tem que ver com a própria inclusão da Hungria na UE. Quando os húngaros assinaram o tratado de adesão, quem estava no poder era um governo democraticamente eleito; assim sendo, foi um governo democraticamente eleito que assinou aquele tratado que prevê a aplicação do artigo 7º. Ou seja: a Hungria decidiu, em democracia, pertencer a uma União Europeia que intervém nas democracias em perigo. Onde está, então, a ingerência ignóbil a que o PCP alude? Se fosse uma ingerência perpetuada por tanques soviéticos talvez a lamúria se abafasse.
É claro que a UE pode estar a cometer um erro clamoroso – não pela falta de legitimidade dos seus processos, mas por um possível erro de análise quanto ao governo húngaro. Será que o executivo de Viktor Órban é assim tão ruim, tão danoso para a democracia? Afinal, ele até foi eleito...
Vejamos só um cheirinho do que por lá se passa: desde 2010 (quando ascendeu ao poder), Órban transformou o país numa Democracia Iliberal, cujo conceito me fez vacilar os dedos antes de escrever “Democracia”. A separação de poderes está absolutamente posta em causa, e o sistema judiciário está sob um controlo feroz e opaco. Os órgãos de comunicação social foram massivamente adquiridos, e hoje assemelham-se a aspersores de propaganda. Jornalistas que não alinhem com o elogio do Governo caem numa lista negra, e são interditados no parlamento. Alguns opositores políticos foram denunciados oficialmente quase como traidores da nação.
A tudo isto acrescenta-se o desencapotado anti-semitismo e, mais mediática ainda, a perversa política contra migrantes (o tipo de política que cultiva elogios nas caixas de comentários de sites portugueses) ou outras chispas xenófobas. Contas feitas, Órban tem aqui uns probleminhas. São problemas com os “valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Esses valores são comuns aos Estados-Membros da UE, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres”.
Viva o artigo 2º. Viva o Copy+Paste.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Brasil a desvanecer.
Aguilar é verbo de autor.
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