Opuseram-se antes os queriam votar contra os que não queriam que se votasse. Tudo o resto ficou para segundo plano, incluindo a autodeterminação. Se temos a tendência irresistível de falar dos prós e contras, da vitória do “sim” e das suas consequências no curto prazo, desequivoquemo-nos: ontem, 1 de outubro, foi um dia de liberdade e democracia.

“Estado de exceção” foi a expressão mais ouvida durante o dia em que a Catalunha realizava o referendo pela autodeterminação. Nas filas enormes de eleitores que às 6h30 já se faziam notar às portas dos locais de voto, nas bocas das duas principais organizações da sociedade civil que estiveram por trás das grandes mobilizações populares de apoio ao “1-O”, a Associação Nacional Catalã e o Òmnium Cultural, e nos discursos das principais figuras do governo catalão, a Generalitat de Catalunya.

Estado de exceção. Filas intermináveis de cidadãos que esperaram debaixo de chuva durante seis horas para poder votar. Sabotagem de serviços informáticos essenciais à realização do referendo, sobretudo as listas informatizadas de eleitores, situação denunciada pela comissão de observadores internacionais que acompanharam o referendo. Pedidos feitos das janelas das escolas onde se votava para que as multidões à porta colocassem os seus telemóveis em ‘modo avião’, uma vez que a troca de mensagens constantes em que figuravam fotografias e vídeos da atuação policial e a localização das carrinhas da polícia espanhola enfraquecia o sinal que os voluntários tanto necessitavam para aceder às listas.

Ouviram-se aplausos demorados aos cidadãos mais idosos que foram votar, sempre os mais emocionados, que diziam nunca esperar ver este dia acontecer nas suas vidas, passadas na sua maioria debaixo da ditadura franquista. Viram-se Mossos d’Esquadra (polícia catalã) emocionados a serem abraçados pela população depois de desobedecerem e enfrentarem um pelotão da Guardia Civil que pretendia fechar um colégio eleitoral.

Escudos humanos de votantes comprimiam-se contra as entradas das escolas para bloquear a passagem da polícia sempre que passavam as carrinhas do corpo de intervenção (oito) que circulavam pela cidade de Barcelona e que intimidavam os demais, desencorajando a saída à rua.

Urnas foram levadas à força, outras foram presas às mesas e às paredes com correntes e cadeados. Tudo num espírito de união (todos cumpriam as ordens dos voluntários) e partilha — passava-se informação, partilhava-se água, comida e histórias de outros catalães que para votar foram agredidos. Escolas sitiadas pela polícia.

Cercos, invasões, vidros partidos, portas rebentadas, medo e revolta, tudo em simultâneo. E sempre ganhou a revolta.

Esconder urnas vários dias em casa de cidadãos, trazê-las para as escolas numa mota de entrega de pizzas, acorrentá-las às paredes e levá-las para os centros de recontagem em carros descaracterizados, tudo para poder votar, algo que os cidadãos, pelo menos os que nasceram em democracia, nunca tinham visto, nem esperavam ver num país da União Europeia. Tanto maior era o contraste com o que acontecia em Portugal, no mesmo dia, em que a polícia assegurava com tranquilidade a segurança da realização de umas eleições autárquicas em que quase metade dos portugueses não votou.

O estado de exceção foi o grande aglutinador de ontem, simultaneamente a maior vitória da Catalunha e a maior derrota de Espanha. Às 9 da manhã, hora a que abriam as urnas, a votação já estava ganha. Se era possível que uma maioria dos catalães não quisesse ser independente (nunca o saberíamos sem uma consulta), tornava-se cada vez mais unívoco e transversal que os catalães queriam o direito a serem ouvidos a cada bastonada que manifestantes pacíficos recebiam dos sujeitos vestidos de preto e verde.

Assim, o fenómeno mais extraordinário de ontem foi a mobilização de um vastíssimo conjunto da população que, sendo catalã e orgulhosa da sua língua, cultura e instituições autonómicas (Govern e Parlament), se sentia ao mesmo tempo parte do conjunto de Espanha e portanto contrária à ideia de independência e de realização do referendo.

O ataque de Rajoy à Generalitat e a suspensão de facto da autonomia da Catalunha vexou-os e indignou-os. O catalão de toda a vida saía assim, pela primeira vez, à rua. Ontem foi o dia em que o “não” silencioso se juntou ao “sim” maior, o da democracia e da decência, independentemente de apoiar o Estado próprio ou o autogoverno nos moldes atuais.

Hoje, a expressão mais popular já não é “estado de exceção”. Hoje é “dignitat”. E assim nasce um País.

Luís Russo estudou Ciência Política em Lisboa e Estudos Europeus na Bélgica. Desde 2012 que acompanha de perto a realidade catalã, tendo acompanhado o dia do referendo em vários colégios de Sabadell e Barcelona.