O grupo, formado em Maio de 2017,  após Donald Trump ter demitido o director do FBI, James Comey, exactamente por este estar a fazer uma investigação sobre a interferência da Rússia nas eleições americanas de 2016, conta com dezenas de advogados e um número indeterminado de agentes do FBI. Até agora as suas investigações, algumas conhecidas, outras sob segredo de justiça, levaram a acusações formais a ex-colaboradores de Trump, como Paul Manafort e o general Michael Flynn, e têm provocado um enorme mal estar na Casa Branca.

Manafort declarou-se não culpado, mas Flynn admitiu mentir sob juramento e dispôs-se a colaborar com Mueller a troco redução de pena. Já esta semana, Rick Gates, outro participante na campanha de Trump, e Alex van der Zwaan, advogado de Manafort, também admitiram culpa e prestaram-se a depor contra Manafort. Ou seja, é aparente que Mueller está a utilizar o método habitual neste tipo de investigação: induzir os menos importantes a colaborar para “subir” até aos mais importantes. O que ele espera, certamente, é que Manafort acabe por colaborar, chegando assim mais próximo do círculo íntimo do Presidente, especialmente dos seus filhos e genro, Jared Kushner.

Neste andamento, com Washington a ferver de boatos e revelações dispersas por parte de vários altos funcionários do chamado “sistema de segurança” americano (as várias agências que se dedicam a contra-espionagem), a interferência russa já era dada como certa, embora sempre negada pela Casa Branca. Trump e os seus próximos têm insistido repetidamente que não houve nenhuma conspiração (“collusion”) entre a sua campanha presidencial e entidades russas. Segundo eles, os negócios de Manafort e Flynn com empresas e particulares russos eram iniciativas pessoais que nada tiveram a ver com a campanha propriamente dita.

Agora Mueller dá um passo em frente na sua investigação, ao acusar formalmente três entidades e 13 indivíduos de nacionalidade russa de interferir directamente no processo eleitoral. O documento, de 37 páginas, descreve em pormenor as actividades levadas a cabo para desestabilizar o tecido social do país e para interferir nos resultados eleitorais através de desinformação. Nas redes sociais, os indiciados criaram perfis fictícios e grupos falsos, para semear a confusão e ampliar as tensões existentes na sociedade, fomentando o racismo, os extremismos e radicalismos vários. Mas a interferência não foi apenas digital; alguns elementos deslocaram-se aos Estados Unidos para investigar e conseguiram organizar manifestações e movimentos, utilizando americanos que, segundo a acusação, não sabiam que estavam a fazer o jogo dos russos.

Nesse ponto a acusação de Mueller é bem clara: os cidadãos americanos envolvidos agiram de boa fé, segundo as suas convicções. Este importante pormenor foi imediatamente usado por Trump para mostrar que não houve nenhuma conspiração da parte dos seus seguidores nem dos colaboradores mais próximos.

“Há russos em todas as partes do mundo”

Mas a questão, como muito bem notaram os analistas, é que a investigação de Mueller não termina aqui; esta acusação é apenas a primeira fase dos trabalhos da comissão. Pode dizer-se que começa agora o desbobinar de uma série de acções que quase certamente irá envolver, se não o Presidente, pelo menos muitos dos seus próximos.

Segundo a acusação, que é abundante em pormenores, os russos começaram por criar confusão em termos gerais, ainda antes da eleição; durante esta apoiaram Bernie Sanders para diminuir as possibilidades de Hillary Clinton; e, finalmente, já durante o período eleitoral, apoiaram Donald Trump.

Um aspecto interessante do documento é a clarificação de como funciona o Estado russo sob a direcção de Putin. Verifica-se um conluio permanente entre as organizações estatais e empresas privadas, alimentado pela amizade do Presidente russo com empresários seus amigos, de modo a que oficialmente se possa sempre negar actividades que seriam impróprias para um governo.

Esta situação verificou-se, por exemplo, numa operação militar decorrida na Síria a 7 de Fevereiro. Na localidade de Deir al-Zour, um grupo de combate constituído por mercenários russos da empresa Wagner e por forças do governo sírio atacou uma posição curda apoiada por americanos. A operação correu muito mal e morreram cerca de cem russos (os números variam com as fontes; algumas indicam 50 mortos e 70 feridos graves). O governo russo, que opera oficialmente na Síria a apoiar Bashar al-Assad, negou qualquer conhecimento da operação. Inquirido sobre a presença dos mercenários, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Shoigu, limitou-se a dizer que “há russos em todas as partes do mundo”. No entanto, sabe-se que mercenários da Wagner estavam presentes, assim como se sabe que a empresa também participou em operações em Donbass, na Ucrânia, onde os russos sempre negaram a sua participação na separação do sul do país.

Ora, na Rússia não existem legalmente grupos militares particulares. A Wagner, fundada e dirigida por um antigo oficial das forças especiais, é composta por membros escolhidos pelo Ministério da Defesa e cidadãos que querem lutar por patriotismo ou simplesmente para ganhar dinheiro. Legalmente, está registada na Argentina. A vantagem duma força deste tipo é que o Governo não tem de reconhecer as suas acções, admitir as baixas, ou indemnizar as famílias como se fosse o caso de militares do exército regular. A Wagner pertence a Dmitriy Utkin, amigo de Putin.

Outro exemplo de outra ordem: quando rebentou o escândalo dos Panamá Papers, um dos grandes investidores que foi revelado chamava-se Sergei Roldugin, um violinista russo residente em Moscovo. Como é que um músico acumula mais de cem milhões de dólares? Muito simplesmente, sendo amigo de Putin – foi ele que lhe apresentou a actual mulher, Lyudmila. Além de tocar violoncelo, Roldugin tem 12,5% da maior agência de publicidade russa, acções da fábrica de camiões Kamaz (fornecedora do exército) e 3,2% do Banco Rossya.

O esquema é muito simples e encontra-se em todos os sectores produtivos da Federação Russa; os amigos de Putin prosperam e, em compensação, dão-lhe cobertura para actividades do seu interesse pessoal e do interesse da política russa. Como no tempo dos czares, não há distinção entre o soberano e o Estado. Para não falar na igreja ortodoxa, reavivada pelo Presidente depois da quase extinção durante os anos soviéticos, e que o apoia de todas as maneiras, inclusive – e aqui fecha-se o círculo – mantendo milícias paramilitares, como a de Akhmad Kadyrov, que combateu na Chechénia contra os muçulmanos independentistas. Kadyrov, também próximo de Putin, era padre ortodoxo antes de encontrar a sua vocação militar.

Voltando à interferência russa nas eleições americanas, uma das três empresas russas indiciadas é a Internet Research Agency, uma “plantação de provocadores” (“troll farm”) dirigida por Yevgeniy Prigozhin, em São Petesburgo. Prigozhin é conhecido como o “cozinheiro de Putin” porque, sendo amigo do Presidente, é ele que prepara o catering para os banquetes oficiais do Kremlin e tem um contrato milionário para fornecer refeições para as forças armadas.

A agência estatal de notícias Ria Novosti perguntou-lhe o que ele acha da acusação de Mueller: “Os americanos são muito impressionáveis. Vêem o que querem ver.(...) Não me impressiona nada que me tenham colocado na lista. Se querem ver o diabo, deixemos que o vejam.”

O diabo está em toda a parte, é bem verdade.