O diagnóstico foi dado tinha a F. ainda 5 anos. Leucemia. Um mês antes, tinham preparado a papelada toda para a matrícula na escola, para o primeiro ano da escola, o que iria permitir à F. alcançar o que andava a sonhar fazia muito tempo: ser professora. A mãe era professora numa pequena freguesia da Madeira e a F. andava com ela para todo o lado, desde sempre. Era ali que se sentia bem: na escola. Porque corria à vontade pelos recreios vazios como se fossem o seu quintal e também porque gostava de saber porque é que as galinhas têm asas e não conseguem voar e os aviões conseguem, apesar de serem muito mais pesados. Sabia que seriam os livros a dar-lhe estas e muitas outras repostas. Por isso, quando fosse grande era professora que ia ser.

Foi a primeira vez que andou de avião, e quando deu início aos tratamentos, em Lisboa, foi necessário transferir a matrícula para uma escola no continente. Nesta mudança, o apoio das professoras do IPO, foi fundamental. Mantiveram a normalidade e não desalentaram a F., que não tinha percebido bem ainda o que lhe acontecera. Sabia apenas que estava doente, era grave, que teve de se mudar com a mãe para Lisboa, porque a doença que tinha obrigava, e que o pai e o mano mais velho tinham ficado no Jardim do Mar. Sabia também que a escola agora era no hospital, e que muitas vezes não tinha condições para acompanhar as aulas, porque os tratamentos a deixavam muito maldisposta e fraca. São três anos, os que fica em Lisboa. Quando regressou a casa, conseguiu fazer dois anos lectivos. Continua a pensar em ser professora.

A J. já não pensava em ser professora, mas em brincadeiras e espaços amplos para correr. Pensava também em galinhas, percebia muito. Quando chegou a Portugal, vinda da Guiné – era de Bafatá, ainda longe da capital – tudo era novo. A J. tinha 13 anos e já fazia tarefas do dia a dia como gente grande, ajudando a mãe e as irmãs mais velhas a cuidar de mais dois irmãos pequenos, que ficaram todos lá. Como tantas crianças vindas dos PALOP, a J. chegou ao IPO com a doença num estadio bastante avançado. Tumor cerebral. Os tratamentos são bastante agressivos. A J. deixou de brincar, comer tornou-se um sacrifício, acabando por estar muitas vezes a soro, não mantinha nada no estômago. Houve esperança, e também momentos em que a J. recuperava. Foram nove meses. Deixou a mãe, sozinha, com um buraco sem fundo de tristeza no coração.

O M., 10 anos, veio de Faro, com a mãe. Deixou a irmã e o pai na terra, a trabalhar, e veio para encher a Casa da Acreditar de corridas; de perguntas difíceis (porque é que tenho de ser eu a ficar doente? Não fiz tudo certo? Portei-me mal?); de verde da esperança que os olhos dele gritam; de conversas longas sobre o mar que se vê da sua casa, e aqui não, claro; do sino da igreja ao domingo a chama-lo para a missa; da irmã, segunda mãe, de quem morre de saudades; do que quer ser quando for grande (é um segredo dele) e de poder andar pela rua sem ter que pedir licença. Dois anos em tratamentos. Aqui, nem do umbral da porta pode sair. E é essa imagem que dói: M. encostado ao vidro da entrada, com os olhos verdes postos na rua, a perguntarem se aquela prisão nunca irá acabar.

Estas histórias são todas baseadas na realidade e a realidade é muitas vezes dura.

O Dia Internacional da Criança com Cancro serve para relembrar que todas as crianças devem ter acesso aos melhores tratamentos, aos melhores cuidados de saúde e a diagnósticos atempados. Devem ter acompanhamento na sobrevivência, e devem ter acesso a cuidados paliativos. Nenhuma criança ou jovem pode ficar sem escola. Têm de continuar a sonhar que a cura é possível, que uma melhor sobrevivência é real, e que podem voltar a brincar.

Em Portugal, cerca de 400 crianças ou jovens todos os anos são diagnosticados. A taxa de sobrevivência é de 80%, mas 20% ainda não sobrevive. E dos sobreviventes, metade ficará com sequelas graves ou muito graves.

Este ano, a Acreditar junta-se à Childhood Cancer International (CCI) e à Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica (SIOP), que assinalam o dia com uma campanha global sob o lema Melhor Sobrevivência é Alcançável Pelas Nossas Mãos (#throughourhands #nasnossasmaos). Assim, a partir de dia 15 de Fevereiro e até ao final de Março, as crianças e jovens em tratamento, os sobreviventes e familiares - tanto destes como daqueles que não sobreviveram, de todos os cantos do mundo - são convidados a mostrar publicamente o impacto da doença nas suas vidas através do site https://iccd.care/.

A campanha está alinhada com a estratégia da Organização Mundial de Saúde #cureall, integrada na Global Initiative on Childhood Cancer (GICC), que destaca o cancro pediátrico como uma das prioridades mundiais na saúde infantil e visa aumentar, até 2030, a esperança de vida global das crianças e jovens adultos para 60%, permitindo com isso salvar um milhão de vidas.

Para que estas histórias passem a ser cada vez mais do reino da ficção.


A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 26 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.