1) Um presidente armado em bolo

Conto a história tal como corre por aí.

Kennedy, poucos anos depois da construção do Muro de Berlim, foi à cidade e fez um discurso famoso. A frase mais conhecida é esta: «Ich bin ein Berliner!»

O presidente queria dizer «sou um berlinense», numa tremenda declaração de apoio à cidade isolada.

Mas, na verdade, ao dizer — de improviso — «ein Berliner», o presidente afirmou muito sério «eu sou uma bola de Berlim»!

«Berliner» é o nome alemão para bola de Berlim. Para se dizer «sou berlinense», é preciso omitir o «ein»: «Ich bin Berliner.»

Ah, grande gafe! Um delicioso erro do homem mais poderoso do mundo!

O que fez a multidão? Riu-se à grande com o erro do presidente.

Ah, quantas vezes ouvi esta história...

2) O bom alemão de Kennedy

Só que não, pelos vistos.

Esta semana, queria escrever sobre erros de famosos. Ora, lembrei-me da tal história da frase de Kennedy e fui procurar artigos sobre o caso.

Pois, ao ler um pouco sobre a questão, descobri que a frase foi escrita por um alemão e ensaiada perante alemães. Esteve longe de ser um improviso. Seria estranho que tantos alemães deixassem passar uma frase que significasse «sou uma bola de Berlim».

Pelo que acabei por aprender (não sei alemão), é possível dizer «Ich bin ein Berliner.» ou «Ich bin Berliner.» (entre outras maneiras de dizer que somos daquela cidade em particular).

No fundo, não será muito diferente de dizer em português «sou lisboeta» ou «sou um lisboeta». A primeira forma será mais comum, mas a segunda está perfeitamente correcta.

A própria bola de Berlim, na cidade, não se chama Berliner (nome usado noutras regiões da Alemanha). Mas, mesmo que o bolo se chamasse assim e a frase pudesse ser interpretada das duas maneiras — «sou um berlinense» ou «sou uma bola de Berlim» —, seria extraordinário que os berlinenses à frente do presidente pendessem para a interpretação virada para os bolos...

E, de facto, os alemães não se riem da frase: aplaudem-na entusiasticamente! Como, aliás, podemos ver no vídeo:

Mas como apareceu este mito? Pelos vistos, a história do suposto erro surgiu pela primeira vez em 1983 — muito depois do discurso — num romance do inglês Len Deighton. A partir daí, o mito foi propalado por publicações respeitáveis como o New York Times, a BBC, a Time — e acabou até num livro de David Foster Wallace. A Wikipédia — tanto a inglesa como a alemã — explica a história do mito.

A ideia espalhou-se até por entre professores estrangeiros de alemão — só os alemães, compreensivelmente, não parecem cair na patranha. A coisa ganhou tal dimensão que há artigos académicos a explicar, detalhadamente, por que razão a frase está correcta em alemão, como este artigo de 1993.

3) A delícia do erro

Mas o que achei mais curioso é verificar como, mesmo perante a explicação, a falsidade se mantém. Há várias páginas que defendem o mito — mesmo mostrando conhecer a explicação linguística que descrevi acima.

Uma página portuguesa acusa mesmo a Wikipédia de inventar uma regra do alemão para defender Kennedy do gozo alemão — esquecendo-se de que o mito é comum nos EUA e não na Alemanha e que a Wikipédia alemã também desmonta o disparate (para lá de que a explicação do caso está em muitas outras fontes fidedignas).

Encontrei até comentadores a garantir que, ao ver o vídeo, detectaram o erro à primeira (um erro que não existe) e ouviram claramente a multidão a rir...

É uma história demasiado deliciosa para desaparecer perante algo tão banal como uma explicação gramatical — eu próprio ainda demorei a aceitar que tivesse acreditado num disparate todos estes anos.

Nos EUA, o mito é pouco mais do que uma piada. Ah, mas por cá, em certos comentários ao «erro» de Kennedy, sentimos a insinuação de que a frase é um sintoma de profunda ignorância sobre o mundo — muito para lá das subtilezas da gramática alemã.

Toda esta história leva-me a algumas conclusões (espero que não muito abusivas). Para começar, todos nós caímos em esparrelas. Mais: uma boa história espalha-se como fogo, seja verdade ou mentira. Depois, os factos nem sempre ajudam a destruir a falsidade. Por fim, se a história inclui um erro de um poderoso, torna-se irresistível... Mesmo que o erro, afinal, seja nosso.

Marco Neves | Tradutor, professor e autor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é o Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.