A eleição presidencial nos EUA só esta semana fica resolvida. Trump não olha a meios para permanecer na Casa Branca e, numa desesperada manobra que faz lembrar o estilo de autocratas, ousou neste sábado um telefonema de 62 minutos, para a autoridade eleitoral da Georgia a pressionar para que sejam “encontrados” os 11.780 votos de que precisa na votação da Georgia para alterar o resultado. Chocou com um republicano com princípios que divulgou aquele inacreditável telefonema. Também é na Georgia que nesta terça-feira acontece uma votação transcendente para o curso político dos próximos anos nos EUA.

O voto de cerca de 6 milhões de eleitores do estado da Georgia, no sueste dos Estados Unidos, vai determinar a margem de manobra política da presidência Joe Biden/Kamala Harris nos próximos quatro anos. 

A eleição, na segunda volta que falta, dos dois senadores por aquele estado vai decidir a maioria no Senado, portanto ditar se a Casa Branca e os democratas ficam com mãos livres para aplicarem as políticas que defendem, ou se ficam obrigados à negociação e prováveis bloqueios por parte dos republicanos, como aconteceu no segundo mandato de Obama.  

A Georgia é o estado que no mapa fica logo acima da Florida. É a terra do reverendo Martin Luther King, o pastor que liderou o movimento pelos Direitos Civis nos EUA e que encabeçou a luta dos negros para deixarem de ser cidadãos de segunda na América; o reverendo King foi distinguido como o Nobel da Paz em 1964 e veio a ser assassinado em 1968, em Memphis, no vizinho Tennessee. A capital do estado da Georgia é Atlanta, a cidade que acolheu os Jogos Olímpicos de 1996 (Fernanda Ribeiro arrebatou o ouro na corrida dos 10.000 metros e a dupla Nuno Barreto e Hugo Rocha ficou com o bronze na classe 470 da Vela). Atlanta é a capital económica do sul dos EUA, sede de grandes multinacionais – Coca Cola, Delta Airlines, CNN – e o berço de start-up tecnológicas que desafiam a liderança de Silicon Valley.

A tradição que vem da Guerra Civil diz-nos que a Georgia é conservadora com a maioria branca a hostilizar ou menosprezar os afro-americanos e os latinos. Nas eleições presidenciais, desde 1991, quando Clinton se impôs também na Georgia, os candidatos republicanos têm sempre sido os mais votados. Até agora, em que a dupla Biden/Harris venceu por 11 mil 779 votos (2.473.633/2.461.854) entre quase seis milhões de boletins contados.

As presidenciais de agora mostram a mutação dos últimos anos no eleitorado da Georgia. Estudos demográficos mostram grande crescimento, sobretudo nos vastos subúrbios da cidade de Atlanta, de população com formação académica, com grande diversidade étnica e que vota maioritariamente democrata. É assim que Biden e Kamala recolheram 65% do voto na zona metropolitana de Atlanta. A tendência é semelhante em outras cidades principais como Augusta e Savannah. Mas nos territórios rurais Trump impôs-se com 63%.

No conjunto do estado da Georgia as duas forças rivais estão ombro a ombro. É máxima a expectativa em torno da votação que nesta terça-feira vai decidir se os dois senadores da Georgia confortam a maioria republicana no Senado em Washington ou a viram para o lado democrata. 

Esta eleição realiza-se agora porque em 3 de novembro nenhum dos pretendentes ao lugar de senador superou os 50% de votos, condição, neste estado, para ser eleito na primeira volta. É o único estado dos EUA em que isto sucede.

A eleição dos dois senadores é separada.

Num dos casos, na primeira volta, o veterano republicano David Perdue, com 49,7%, ficou à beira da eleição. Mas o jovem democrata Jon Ossoff, com 47,9% ficou a 88 mil votos, sendo que o agora excluído candidato do Partido Libertário teve 115 mil.

Na outra eleição, o candidato democrata Raphael Warnock, pastor na igreja que foi a de Martin Luther King entre 1960 e 1968, recebeu 32,9% dos votos. A rival republicana Kelly Loeffler, considerada uma “trumpista radical”, recolheu 25,9%. O republicano moderado Doug Collins, que teve 20% dos votos, fica excluído da crucial decisão nesta terça-feira.

Os dois candidatos republicanos ao Senado alinham com os que não reconhecem Biden como presidente eleito. É uma posição que desagrada a republicanos que defendem o respeito pela norma democrática e que já estão em luto político por Trump.

O campo democrata está revigorado pelo triunfo de Biden nas presidenciais. A obstinação de Trump e de algumas figuras republicanas de topo na recusa do reconhecimento da vitória do adversário estão (dizem as sondagens) a instalar dúvidas entre parte do eleitorado republicano da Georgia. As sondagens mostram alta imprevisibilidade para o epílogo das eleições desta terça-feira.

O Senado em Washington, com grande poder sobre a vida política dos Estados Unidos, tem 100 lugares (sobrepõe-se aos 435 eleitos na Câmara dos Representantes). Neste momento, os republicanos já têm garantidos 50 lugares. Os democratas estão com 48. Se os democratas conseguirem arrebatar os dois eleitos pela Georgia, os dois grandes partidos ficam empatados com 50 senadores. Mas a Constituição dos EUA entrega a quem for titular da vice-presidência do país, no caso atual a eleita Kamala Harris, democrata, o voto de desempate.

O controlo das duas câmaras (a dos Representantes e o Senado) é decisivo para a nomeação de altos cargos e para a aprovação dos gastos federais.

Em sinal da importância transcendente da votação para senadores pela Georgia, tanto Biden como Trump vão estar nesta segunda-feira em campanha neste estado do sul.

Independentemente deste resultado, o ainda presidente Trump ainda sonha com alguma reviravolta no resultado presidencial. Na quarta-feira, dia de Reis, dois meses depois da eleição e a 15 dias da posse, o Senado dos Estados Unidos reúne-se para a definitiva validação dos resultados e proclamação do próximo presidente dos EUA. Há 11 dos senadores republicanos (entre os ainda 52 do Senado cessante) que anunciaram querer contestar a eleição de Biden. Trump sonha com algum golpe que no último minuto lhe seja favorável. Mas o líder republicano no Senado, Mitch McConnell, na velha tradição, já cumprimentou Biden como o próximo presidente. 

A democracia dos Estados Unidos tem robustez para resistir aos golpes de quem não sabe funcionar com as regras da democracia.

A TER EM CONTA:

Seis pontos principais do telefonema “encontre os votos” de Trump para o secretário de Estado na Georgia.

Os eleitos republicanos que querem tentar alguma manobra de última hora na validação dos resultados, na quarta-feira, pelo Senado.

Duas primeiras páginas escolhidas neste 4 de janeiro: esta e esta.