Não é o caso. A Grã-Bretanha acha que pode navegar a sua superioridade pelos mares da Terra e não quer ajuda de ninguém.

Theresa May, a senhora empenhada e voluntariosa que estava a tentar manter o país acima da linha d’água, teve na sexta-feira o seu “day”: demitiu-se de Primeira-ministra e Secretária Geral do seu partido, ou, como seria mais acertado dizer, foi despedida. Até chorou, o que as televisões mostraram em grande plano, com requintes de crueldade. Corrida porta fora pelos seus (o próprio partido Conservador, brutalmente dividido), pelos aliados (o partido unionista da Irlanda do Norte, DUP) e, obviamente, pelos inimigos - o partido Trabalhista, também ele dividido, mas tendo ao leme Jeremy Corbyn, para quem tomar o comando do barco é muito mais importante do que o que possa acontecer aos passageiros.

Já muito se escreveu sobre as voltas e reviravoltas do Brexit, desde que David Cameron teve a infeliz ideia de propor um referendo sobre a permanência do Reino Unido numa EU onde realmente nunca esteve. Um casamento de conveniência, aliás muito conveniente para as ilhas, que conseguiram obter todas as vantagens possíveis com um mínimo de obrigações.

Porque era a Velha Senhora, o ex-Grande Império, e porque se queria que a União incluísse toda a Europa, o Continente lá foi aceitando as exigências, à luz duma novidade na política internacional que muitos consideram um sinal de fraqueza: o consenso. Puxa daqui, tira dali, cada parte cede um bocadinho até chegar ao equilíbrio precário. O consenso, considerado um avanço da Civilização Ocidental, é antes um sinal de que a dita civilização está em decadência. Quando não estava, decidia tudo à cacetada. A Europa esteve em guerra dentro de si própria praticamente sempre, desde que o Império Romano acabou, ele também vítima da sua decadência. A Guerra dos Trinta Anos, a Guerra dos Cem Anos, as peninsulares, as religiosas, as napoleónicas, as nazistas... Não vamos fazer aqui uma lista, que encheria a memória do computador.

Adiante. A grande questão do Brexit é que quando se votou o Brexit não se pensou – quer dizer, os britânicos não pensaram – que havia a impossibilidade irresolúvel das duas Irlandas. Todas as outras questões, livre-trânsito de pessoas e bens, cooperação técnica e económica, segurança, leis agrícolas e regulamentos sobre as dimensões das garrafas, todas poderiam ter uma solução, graças ao tal consenso. Os ilhéus sempre se consideraram diferentes do Continente e como tal se comportavam, ao ponto de continuarem a guiar pela direita e a beber onças líquidas em vez de litros. Acabado o Império (em 1947, com a independência da Índia, digamos), mantinham todos os sinais exteriores imperiais, entre eles a sobranceria e a monarquia. No mesmo dia em que May se demitiu, mostrando que o país chegou a um estado em que ninguém se entende – a Rainha Isabel deu uma garden party a oito mil convidados, eles de fraque, elas com uns chapéus de maravilhoso recorte. Numa relva impecável, as pessoas brilhantes trocaram vénias e salamaleques, como se o mundo impecável do século XIX estivesse intacto. No mesmo dia em que uma reportagem da BBC mostrava como o tráfego de drogas derramou dos marginais para as pessoas da classe remediada e acompanhou de câmara na mão a prisão de 600 pessoas “normais”.

Os referendos, já alguém reparou, são uma arma antidemocrática. Parece uma contradição, e não o será num país como a Suíça, mas não faltam exemplos de referendos que levaram ditaduras ao poder, como na Alemanha e em Portugal, para não sairmos da Europa. A razão, afinal, é muito clara: as pessoas votam em perguntas simples para questões complicadas, sem estarem muito bem informadas sobre o que está em jogo. Para isso é que há o filtro da democracia representativa, onde as pessoas votam em representantes que estão mais aptos a decidir em nome delas.

Cada país tem o seu cancro oculto ou descarado, sob a forma duma classe dominante instalada; no Reino Unido é a chamada “chumocracy” (chum quer dizer amigalhaço); os meninos das escolas de elite – que lá se chamam públicas, enquanto as públicas se chamam privadas, outra singularidade – que depois se movimentam na política e na economia, competindo entre eles, mas unidos no desprezo pela plebe. Que saibamos, só há dois países em que a diferença de classes se percebe imediatamente pela maneira de falar: na Grã-Bretanha e no Japão. Um menino como Jacob Rees Moog abre a boca para dizer “está um lindo dia” e soa completamente diferente do mesmo dia dum puto como Bobby Robson, o sagrado treinador de futebol que até foi nobilitado, mas era filho dum mineiro.

Para os “chums” o que interessa é manter a superioridade, e a superioridade fica seriamente ameaçada com a integração do país num poder maior. Não deixariam de vestir fraque nem de andar de Aston Martin, mas já não teriam o poder de decidir as leis e os regulamentos que os mantêm tão brilhantes.

Do outro lado da barreira temos os trabalhistas, o partido dos pequeninos, que temporariamente cai nas mãos dos “chums” (Tony Blair, por exemplo), mas que geralmente pensa em termos de luta de classes – uma luta com boas maneiras, fora uma greve selvagem ou outra. Não adianta dizer a Jeremy Corbyn que o Brexit será tão mau para patrões como para empregados, como não adiantou dizer aos reformados ingleses em Espanha que se votassem para sair, provavelmente também teriam de sair do Continente.

Para nós, que estamos a assistir de fora a esta tragédia shakespereana, a falta de senso é perplexante. Nas eleições para o Parlamento Europeu, que decorreram antecipadamente na Grã-Bretanha – sabendo-se que a Grã-Bretanha não participará nesse parlamento – o grande vencedor foi Nigel Farrage, um dos mais ferozes anti-europeístas. Farrage, nos últimos vinte anos, o único emprego que teve foi no Parlamento Europeu. Concorreu incontáveis vezes às legislativas da ilha, e nunca conseguiu ser eleito. Quer dizer, acaba de ser escolhido mais uma vez para participar numa assembleia de que é radicalmente contra. Pode-se raciocinar que a vitória desta vitriólica figura se deve ao cansaço dos eleitores com os dois grandes partidos que não conseguem decidir nada, pois conseguiu um resultado acima dos 30%. Somando os restos dos conservadores e uma metade dos trabalhistas, podemos considerar que cerca de metade dos ingleses continuam a achar que uma Grã-Bretanha sozinha terá de novo mão no seu destino. Mas o raciocínio lógico parece que não está a acontecer naquelas paragens, substituído por um saudosismo imperialista fora de estação.

O país não vai acabar, certamente, mas espera-o um futuro amargo. No mundo globalizado, em que a escala das economias é determinante, o Reino Unido não tem massa crítica para dar cartas. Sobreviverá, com certeza, com um Serviço Nacional de Saúde pior, mais desemprego, custo de vida mais alto, acesso a menos amenidades e maior criminalidade. Mas isso não impedirá a continuação dos garden parties espampanantes. E o povo? Como disse um inglês entrevistado pela Sky News, “Vencemos a Batalha de Inglaterra (na II Guerra Mundial), também vamos vencer esta.” Como se pode responder a isto?

Descendo à terra, a pergunta é: quem vai suceder a Theresa May? Pelo sistema britânico, não tendo a sua demissão sido provocada por uma moção de desconfiança no Parlamento, o Partido Conservador continua no poder. Agora, através de um processo especificamente codificado, os filiados do partido vão escolher entre os candidatos apresentados pela cúpula. O engraçadinho e inconsequente Boris Johnson, que quando foi Ministro dos Negócios Estrangeiros cometeu gafes patéticas, já disse que é candidato. Logo depois da queda de May, as casas de apostas, uma sondagem sempre muito indicativa, apontavam-no como favorito, com um rácio 6/5 (seis contra, cinco a favor). Uma Grã-Bretanha com Johnson como Primeiro-ministro não é uma tragédia shakesperana, é uma ópera bufa. Os outros prováveis são Dominic Raab (7/2 nas apostas) e Michael Gove (10/1). Há ainda Andrea Leadsom, 11/1 (que acabou de se demitir como líder parlamentar dos conservadores, disparando efectivamente a demissão de May) e Jeremy Hunt, também 11/1. Todos pertencem à ala mais conservadora partido e são brexiteers convictos. Nenhum deles, nem Jeremy Corbyn, cogitam num novo referendo, portanto essa hipótese está enterrada. (Corbyn quer é eleições, para ganhar e propor uma solução mágica que ninguém ainda percebeu qual é.)

Quando a um acordo com a União Europeia, a questão incontornável continua em cima da mesa: o que fazer com a fronteira entre as duas Irlandas. Nunca é por de mais repetir que, quanto a isto, não há uma divergência entre o Reino Unido e a União Europeia; são os ingleses que não sabem o que propor aos europeus. Com um Primeiro-ministro a favor do hard Brexit, o mais provável é uma saída sem acordo. Depois haverá certamente umas eleições dramáticas, mas isso já não nos diz respeito, não é verdade?