Já todos sabemos que a hora vai mudar no próximo domingo mas, ainda assim, amanhecemos com os olhos semi-cerrados que teimamos em não querer abrir. As nossas manhãs vão de uma violência atroz que se arrasta até ao final do dia, quando chegamos a casa, já noite escura. A culpa não é da luz solar. A culpa é nossa, que nos sobrecarregamos de actividades, estendendo os horários ao limite da exaustão. Uns, porque já não sabem viver de outra maneira, outros porque querem ser muito importantes e ganhar muito dinheiro ou porque precisam combinar vários trabalhos para garantir que as contas se saldam ao final do mês. As crianças saem cedo e chegam tarde, acompanhando esta roda-vida dos pais.

A questão é simples: para quê?

Quando foi que o mundo se transformou neste lugar inóspito para viver, em que a palavra viver passou a ser sinónimo de trabalhar e trabalhar o único verbo que podemos conjugar? O que nos fez abandonar a lógica de bairro, que nos permitiu morar, trabalhar e viver numa área que podíamos percorrer a pé? Sem qualquer militância bairrista, porque as grandes cidades perderam muita qualidade de vida, quando foi que cidade e cercanias se tornaram uma mistura tão grande e indecifrável, sem planeamento urbanístico, acessos ou transportes articulados? Quando foi que a suposta anulação do tempo e do espaço criou uma aldeia global que pouco tem de aldeia e nada de global?

Lá porque sabemos o que se passa aqui e ali, ou comunicamos com quem está do outro lado do mundo, isso não quer dizer que a nossa vida seja melhor. Creio que a tecnologia deve existir para nos servir mas a sua extensão a todos os domínios do social transformou-nos em escravos das ferramentas que, supostamente, usamos para facilitar a nossa vida. Não há facilidade nenhuma em ter uma aplicação instalada no telefone que nos dá os horários dos transportes públicos quando temos de fazer uma deslocação diária de duas horas porque não há casas na cidade ou dinheiro para as pagar, da mesma forma que também não vejo grande utilidade numa aplicação que nos diz quando deitar, para acordar antes do sol nascer.

Olho para a minha filha e vejo-a cansada, consulto o horário da escola - obrigatória - e questiono-me sobre a razão para tantas horas e disciplinas. Depois penso nas suas amigas e na constante indisponibilidade destas crianças, que se dividem entre as escola e as restantes atividades. O inglês, para complementar o ensino oficial, o desporto, porque as crianças têm de se manter ativas, a música ou instrumento musical, porque é excelente para a sua formação e raciocínio matemático. Finalmente, qualquer outra coisa porque eles gostam muito. A juntar a isto, o apoio ao estudo, porque a maior parte dos pais não tem tempo, ou capacidade, para ensinar de acordo com os novos métodos que trocam as voltas a quem fez a quarta classe nos anos oitenta. Novamente, para quê?

Depois têm de estudar para atingirem a meta da excelência porque isto está tão mau que só os melhores se safam… é preciso atingir uma média para entrar na universidade, estudar muito para sair e encontrar um leque de opções tão limitado e mal pago que, pergunto outra vez: para quê? Para ficarem até aos trinta com os pais ou voltarem a meio dos quarenta porque perderam a sua independência financeira? Para morarem do outro lado do mundo procurando algo que os realize em todos os sentidos da palavra realização? Neste tempo que passa entre o acordar e o deitar, quando é que fomos verdadeiramente felizes? No tempo que media a infância destas crianças e o seu futuro como adultos, quantas vezes brincaram despreocupadamente?

Este não é um texto com sugestões ou ideias. É apenas uma reflexão que, creio, precisamos fazer conjuntamente, na sofreguidão dos dias e das notícias, de Trump com o seu twitter maléfico, Bolsonaro que se aproxima do poder, desta maré que inunda a Europa, e o mundo, procurando alternativas à política e aos políticos tradicionais e que dá, a discursos extremistas ou personalidades fortes, um poder que até aqui não tinham. Quando foi que aceitamos tolerar o medo e o ódio?

Muda a hora mas não vamos acordar da anestesia mediática que casa pessoas em direto ou nos apresenta propaganda. Precisamos voltar ao tempo ou lugar no qual deixámos o sentido crítico para o recuperar e (re)aprender a pensar, sem comentários ou comentadores. É também tempo de (re)pensar o plástico nos oceanos, deixar de reciclar para mudar o raciocínio: reutilizar ou não comprar, em conjunto, anulam a necessidade da reciclagem, esse negócio que só aparentemente vem salvar o mundo.

É, sobretudo, tempo de pensar nisto tudo, nos miúdos de hoje que não têm futuro amanhã e questionar: tudo isto, para quê?