Vai daí, achamos que a palavra quer dizer a mesma coisa nestas duas frases: "O PNR é um partido nacionalista" e "Ontem conheci um catalão nacionalista". Esta confusão inquina as nossas discussões sobre o caso catalão.
Vou tentar ordenar o melhor possível os significados desta palavra perigosa.
- Nacionalismo enquanto afirmação da existência duma nação
Para começar, um nacionalista é alguém que acredita na existência duma determinada nação.
Sim, neste sentido, todos os portugueses são nacionalistas — e todos os espanhóis também. Parece um sentido trivial. Se somos todos nacionalistas, será que a palavra serve para alguma coisa?
Ora, as nações são entidades mais subjectivas do que nos parece a nós, portugueses, habitantes dum Estado que corresponde quase perfeitamente ao nosso sentimento nacional. Sim, em Portugal este sentido é muito pouco útil. Mas em países onde a questão nacional não está bem resolvida (olá, Espanha!), a palavra tem, muitas vezes, este sentido simples.
Afinal, é esse sentido que muitos catalães dão à palavra. Um nacionalista catalão é alguém que acredita na existência duma nação catalã — ora, como sabemos, essa crença é pouco pacífica do resto do Estado espanhol, onde se acredita piamente na existência duma nação chamada Espanha que tem de ter a Catalunha lá dentro.
- Nacionalismo enquanto defesa duma identidade política
Este é o segundo significado da palavra "nacionalismo": a crença de que a minha nação deve ter expressão política.
Mais uma vez, esta definição parece-nos trivial, pois assim somos quase todos nacionalistas. É básico: Portugal é uma nação e deve ser independente.
Ora, muitos catalães defendem o mesmo no que toca àquela que acreditam ser a sua nação: acham que a Catalunha merece governar-se a si própria. Isto não se traduz imediatamente em independentismo. Durante décadas, a maioria dos catalães (os nacionalistas da extinta CiU, por exemplo) defenderam uma nação catalã autónoma — mas dentro de Espanha.
Claro que, para tal, temos de entender Espanha como um Estado com várias nações — e aqui os catalães esbarram na visão nacionalista espanhola, que defende Espanha como um Estado constituído por uma só nação.
Se Espanha deixasse os catalães afirmarem juridicamente que a Catalunha é uma nação talvez não estivesse com este referendo nas mãos.
O processo de aumento do independentismo na Catalunha começou em 2006, quando os catalães votaram em referendo um novo Estatuto de Autonomia que definia a Catalunha como nação dentro de Espanha.
Os eleitores catalães aceitaram o novo estatuto sem dificuldade: não queriam a independência, queriam apenas respeito pela sua identidade nacional. O novo Estatuto foi enviado para o Parlamento espanhol, onde foi — vejam só isto! — aprovado.
Esta definição da Catalunha enquanto nação dentro de Espanha só foi riscada quando a lei chegou ao tribunal constitucional. A palavra "nação" ficou apenas no preâmbulo, com uma nota imposta pelo tribunal a informar os incautos que a afirmação de Catalunha como nação não tem qualquer validade jurídica.
Essa nota lembra-me aquela velha rábula dos Gato Fedorento. Imagino mesmo os juízes a afirmar: "Os senhores catalães ali ao canto não têm personalidade jurídica!".
Foi a partir daí que os nacionalistas catalães começaram a cair para o lado do independentismo. Se o meu Estado não aceita a minha nação, se calhar o melhor é mudar de Estado...
Sim, eu sei, como todos os nacionalismos, o nacionalismo catalão olha para a história de forma enviesada. Mas é assim em todos os países: nós também fazemos o mesmo e Espanha não se fica atrás no que toca à reinvenção da História para sublinhar a grandeza da nação.
Há uma diferença significativa: portugueses e espanhóis, com estados às costas, podem dar-se ao luxo de se afirmarem pouco nacionalistas. Os catalães, que se sentem — pelo menos uma parte significativa deles — como uma nação com séculos e séculos de história, vêem-se na obrigação de afirmar continuamente a existência dessa nação, mesmo contra os tribunais do próprio Estado onde vivem.
- Nacionalismo enquanto isolacionismo
Ainda esta semana correu por aí um manifesto de intelectuais espanhóis que se afirmavam contra o nacionalismo catalão porque o nacionalismo foi a origem das grandes guerras do século XX.
Ora, o nacionalismo que deu origem a tantas guerras durante o século XX é outra coisa: é o nacionalismo daqueles que acreditam na superioridade da sua nação e defendem o seu isolamento. Não é isto, claro, que a larguíssima maioria dos catalães defende — tal como não é isto que defendem os portugueses e os espanhóis. Reparem: dificilmente um nacionalista xenófobo português defende a União Europeia — já na Catalunha, é difícil encontrar um independentista que não queira a sua nação na União Europeia.
É para evitar estas confusões que muitos independentistas raramente falam de nacionalismo. São independentistas. Querem, no fundo, ter o privilégio de não dar importância à nação — são independentistas para poderem deixar de ser nacionalistas.
Portanto, a esses intelectuais espanhóis que põem às costas dos catalães o peso das guerras mundiais, pergunto: acreditam que Espanha é uma nação? É provável que sim. Acreditam que deve ser independente? Pois claro. Então, são tão nacionalistas como os independentistas catalães. Ah, mas é diferente — dizem-me. Porquê? Porque a vossa nação tem mais direitos? Teve sorte? É melhor? Ou porque não acreditam que a Catalunha é uma nação? Não será isso uma manifestação um tudo-nada agressiva do vosso próprio nacionalismo?
Enfim, apesar dessa dificuldade dos nacionalistas espanhóis em aceitar as outras identidades nacionais do seu próprio Estado, não é impossível que Espanha acabe como país múltiplo em paz consigo próprio, onde todos aceitam as várias identidades que por lá existem. Mas, por alguma razão, tenho pouca esperança que isso venha a acontecer.
Marco Neves é tradutor e professor, autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e do romance de aventuras A Baleia Que Engoliu Um Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.
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