Nanci Pelosi não é uma deputada qualquer; entre o fim da presidência Obama (2016) e o começo da de Biden (2021), foi a verdadeira dirigente do Partido Democrata, que até à eleição de Biden não tinha ninguém suficientemente carismático e bem colocado para o liderar. Aos 82 anos, parece em plena forma e conta com uma experiência política que começou na década de 1980.
Teoricamente, Biden é agora quem manda no partido, contudo, na prática, Pelosi continua a ser a mais influente. Ao que se sabe, dão-se muito bem, mas certamente que terão as suas divergências, que não podem de maneira nenhuma chegar a público. Não podem, mas chegaram, numa péssima altura para o país e para o mundo.
Pelosi decidiu fazer uma visita aos países asiáticos e incluiu Taiwan, aquele país de 24 milhões de habitantes que não existe (só é reconhecido oficialmente por 13 países e o Vaticano), mas é o mais importante produtor mundial de circuitos integrados (chips).
Taiwan, vale a pena lembrar, é a ilha onde se refugiaram em 1949 os nacionalistas de Chiang Kai-shek, depois de perderem a guerra civil contra os comunistas de Mao Tsé-tung. Desde então, a China continental considera Taiwan como uma “província rebelde” e combate qualquer forma de reconhecimento internacional. Na sua famosa visita à China, em 1972, Nixon fez um acordo que incluiu o “desaparecimento” de Taiwan como país independente, embora na prática os Estados Unidos continuem a manter relações com a ilha e, mais do que isso, sempre afirmaram que a defenderiam de uma invasão do continente.
Nestes 76 anos, a República Popular da China conheceu um desenvolvimento colossal (irregular, como aconteceu durante a Revolução Cultural de 1966-76), sempre sob a mão firme do Partido – aliás, cada vez mais firme, ao ponto de controlar digitalmente todos os cidadãos, e politicamente todas as decisões económicas e científicas. No mesmo período, Taiwan passou da ditadura da família Chiang para uma democracia parlamentar do tipo ocidental e teve um desenvolvimento mais fenomenal ainda, tornando-se um exemplo mundial de desenvolvimento.
A probabilidade do continente invadir a ilha esteve sempre em cima da mesa; para a República Popular é uma certeza, e apenas uma questão de oportunidade. Essa oportunidade tornou-se mais aguda agora, primeiro porque Xi Jinping se prepara para o congresso nacional em que será sagrado líder do país por mais um mandato de cinco anos e precisa de mostrar determinação, segundo porque a tentativa da Rússia absorver a Ucrânia (que a China apoia não declaradamente) está a absorver as energias e recursos dos Estados Unidos (e da Europa), que não poderiam plausivelmente ter duas frentes de contenção simultâneas.
Xi está a ver o que vai acontecer com a aventura da Rússia para orientar o seu ataque à ilha; a invasão não será para já, mas está mais próxima de acontecer, de uma maneira ou de outra.
Todos os analistas reconhecem que o “problema” da Rússia é presente e terá um fim a curto prazo, mas que o “problema” da China é muito maior e a longo prazo. Não se vê como impedi-la de ser a potência predominante do século XXI.
É neste contexto complicado e perigoso que Nanci Pelosi decidiu, assim de repente, visitar Taipei. O governo Biden foi contra, como se soube por várias afirmações do executivo. Quando se referiu à viagem, o presidente foi claro que os seus chefes militares não achavam que fosse uma “boa ideia, nesta altura”. Biden viu-se confrontado com duas opções, ambas más: se apoiasse Pelosi, arriscava-se a uma confrontação com a China; se não apoiasse, mostrava-se fraco perante as ameaças chinesas e dava o flanco a críticas dos republicanos.
Finalmente, a Casa Branca resumiu-se a lembrar que há uma separação de poderes entre o Executivo e o Legislativo, uma resposta semântica, pois, embora sejam separados, são do mesmo partido e devem actuar em conjunto.
Como muito bem lembra o “The Economist”, “a viajem da Sra. Pelosi mostra como o Governo está inseguro quanto à sua política em relação a Taiwan. Se a visita escalar numa crise de segurança internacional, a culpa será da China. Mas a situação também é um teste para o Sr. Biden e a sua equipa, que já têm de lidar com a guerra na Ucrânia. Estarão preparados?”
A viagem pode ser vista como uma declaração de princípios. A China tem sido muito agressiva até com os países que mantêm relações fracas e “inocentes” com a ilha. É o caso, citado pela revista, da reacção contra a Lituânia, “um país com 2,6 milhões de habitantes, que deixou abrir uma delegação de Taiwan em Vilnius.”
Quanto à viagem de Pelosi, os chineses reagiram imediatamente, com ameaças bélicas. Já tinha acontecido o mesmo em 1997, quando o então líder da maioria parlamentar norte-americana, o republicano Newt Gingricht, foi a Taipei. Mas Gingricht, astucioso, primeiro parou em Pequim e convenceu os chineses de que a visita era inofensiva, ao mesmo tempo que lhes reafirmava o empenho dos Estados Unidos na independência de Taiwan.
Segundo o Asia Times, o embaixador chinês no Conselho de Segurança da ONU afirmou que “um erro passado não torna legítimo o erro seguinte”. E logo a seguir Taiwan começou a ser alvo de ataques informáticos, ao mesmo tempo que os chineses proibiram a importação de cerca de vinte tipos de produtos alimentares taiwaneses. “Há uma crise iminente”, conclui o jornal.
Nos Estados Unidos, os comentadores do New York Times, uma boa referência da pluralidade de ideias, dividem-se. Thomas Friedman diz que Pelosi tomou uma decisão “irresponsável e perigosa”. Acrescenta: “Nada de bom pode acontecer. Taiwan não ficará mais segura nem mais próspera como resultado desta visita puramente simbólica e os maus resultados podem ser muitos. Como uma resposta militar da China, o que levaria os Estados Unidos a enfrentar conflitos simultâneos com uma Rússia nuclear e uma China nuclear. (...) Há alturas em que é preciso pensar nas consequências. (…) Para aumentar a possibilidade da Ucrânia repelir a invasão de Putin, Biden e o seu assessor de Segurança Nacional, Jake Sullivan, tiveram uma série de contactos muito duros com os líderes chineses, implorando a Pequim que não entre no conflito dando assistência militar à Rússia. (...) Biden disse a Xi que se a China se colocasse ao lado da Rússia perdia os seus maiores mercados de exportação, a Europa e os Estados Unidos.”
Bret Stephens pensa exactamente o contrário, que Pelosi não pode deixar de ir a Taipei: “Os provocadores amiúde testam a resolução do adversário, à procura de sinais de fraqueza. E vêem sempre as tentativas de conciliação como sinal de capitulação. É exactamente o que está a acontecer agora. Citando Sun Tzu: “Obter 100 vitórias em 100 batalhas não é o máximo da eficiência. Derrotar o inimigo sem nenhuma batalha é que é o máximo da eficiência.” Se Pequim conseguisse prevalecer numa situação tão pouco importante como a visita de Pelosi, não seria apenas uma vitória simbólica ou uma exibição diplomática; mudaria as regras do jogo. Em vez de evitar uma crise diplomática, teria precipitado um desastre estratégico: mais isolamento para um aliado democrático e parceiro económico essencial dos Estados Unidos – uma espécie de prelúdio da rendição, guerra, ou ambas as situações.”
Estas opiniões foram escritas antes de Pelosi aterrar em Taipei. Quando chegou, foi recebida com uma emoção e um entusiasmo palpáveis.
Não admira. Para os taiwaneses, que nasceram e vão morrer com uma ameaça bíblica diária sobre as suas cabeças, qualquer gesto que apenas reconheça o seu direito de viver é uma vitória.
O gesto de Pelosi pode ter objectivos que sabemos e outros que não sabemos, mas o que está aqui em causa não é se os Estados Unidos são imperialistas ou se a China é a distopia mundial no horizonte; o que está em causa é um país democrático e eficiente, que tem todo o direito de ser como quer.
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