Surreal sugestão da parte dum comentador sobre uma figura política. Mas, tratando-se de Boris, até faz sentido, porque ele poderia, de facto fazer uma coisa assim e sair ileso. Surreal, também, que uma figura como ele possa chefiar o que já foi um Império extremamente eficiente no prosseguimento dos seus interesses. Como um banquete em que se bebe demais e de repente temos um bêbado em cuecas aos pulos em cima da mesa, perante a complacência geral. Não que o bêbado não tenha a noção do que é ser inconveniente; apenas usa a inconveniência para se fazer interessante.

É difícil definir Boris Johnson. Talvez o que esteja mais próximo seja a personagem do Coringa interpretada por Jim Carrey em “Batman para sempre”: inteligente e perverso por dentro, apalhaçado e ridículo por fora. As maldades que faz, fá-las sempre sob a forma de piada ou de enigma. Ri de si próprio e dos outros, tropeça, veste-se com desmazelo, tem um cabelo rebelde, faz figura de parvo sem noção; mas tem um destino e vai atrás dele com um zelo persistente. Perfeito para animar festas e casamentos, talvez não seja o ideal que o Reino Unido está a precisar neste período de dúvidas e aflição.

As perversões do sistema político inglês, sedimentado ao longo dos séculos, levaram a esta situação inusitada: um Primeiro-ministro escolhido por 160 mil pessoas, num país com 66 milhões de habitantes. Tal como em Portugal, aliás, o Governo só cai com uma moção de desconfiança no Parlamento (cá também pode ser por decisão do PR, já aconteceu). Não havendo a moção, o partido que ganhou as eleições mantém-se no poder até às seguintes, e até lá escolhe o Primeiro-ministro que quiser. Cada partido tem o seu método de escolha. No caso dos conservadores, os parlamentares escrutinam os candidatos, que eram inicialmente dez, até chegar a dois, e esses dois são votados pelos filiados com as quotas em dia.

Esses dois acabaram por ser Jeremy Hunt, actual Ministro dos Negócios Estrangeiros, e Boris Johnson, que também já teve esse cargo, mas agora é só parlamentar (MP). Hunt é o que se deseja num político: empenhado, preocupado com as andanças da Nação, com um discurso coerente. É também uma pessoa com o carisma dum esfregão de cozinha. (Para usar a classificação que Nigel Farage deu em pleno Parlamento Europeu a Van Rompuy, então Presidente do Conselho Europeu. Mas isso é outra história.) Quanto a Boris, não tem nenhuma das qualidades de Hunt, mas tem carisma, e um carisma muito original: não é bonito nem simpático, antes apardalado e caricatural – mas convence. Ora, nesta época em que o parecer tem muito mais importância do que o ser, a fronha preocupada de Hunt não parece ter possibilidades perante a displicência sorridente de Johnson.

Porque, quando às propostas propriamente ditas, são os dois iguais: não têm nenhuma em concreto. Ou seja, no que toca ao Brexit, que é o único assunto que interessa à Grã-Bretanha neste momento (todas as questões sociais e políticas de gestão do país estão em suspenso há três anos), ambos dizem que vão resolver o problema sem dizer como (porque o problema da Irlanda não tem solução); e que se não resolverem, mesmo assim saem da União Europeia em Outubro.

Mas então, para lá do carisma, o que tem Boris Johnson a seu favor? Um percurso profissional convincente, seria uma boa razão. Muitos jornalistas têm-se debruçado sobre essa carreira, agora que Boris está a coroá-la com o mais cargo mais responsável do Reino Unido.

Alguns, como Max Hastings, editor de Johnson quando ele era repórter do “Daily Telegraph, citado pelo “Guardian”, diz simplesmente que é a pior pessoa possível para liderar o país porque “não se preocupa com nada, a não ser a sua própria fama e satisfação.”

No “Economist”, revista conservadora, um artigo não assinado (logo, editorial) diz o seguinte: “O ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros, que é visto com uma combinação de incredulidade e despeito nas capitais europeias, tomou atitudes contrárias em diferentes alturas. Como Presidente da Câmara da Londres cosmopolita e liberal, em 2008-16, pregou as virtudes da imigração e do mercado único.

Como farol orientador da campanha para sair da UE, passou, sem esforço aparente, a criticar a imigração e a avisar sobre o perigo da entrada da Turquia para o mercado único, que anteriormente defendera. Agora, ao procurar os votos da direita do Partido Conservador, fala de sair da EU sem acordo – “que se lixem os negócios”, se se atravessarem no caminho – e goza com as mulheres com burcas, “que parecem marcos do correio”.

E, lembra muito bem o “Economist”, Johnson vai ser eleito pelos militantes do Partido Conservador; numa sondagem recente, a maioria disse que quer sair da EU mesmo que provoque “estragos significativos” na economia, provoque a secessão da Escócia e da Irlanda do Norte e “destrua” o próprio Partido Conservador. Para pessoas tão radicais, os dois candidatos finais não precisam de apresentar planos detalhados disto ou daquilo, basta que sejam a favor do Brexit, chova ou faça sol. Esta polarização serve perfeitamente a Johnson, que não gosta de elaborar sobre entediantes minudências.

Por outro lado, Johnson, ao contrário de Trump (a comparação entre os dois é recorrente), gosta de ter à sua volta pessoas que o aconselhem. Não se importa nada de delegar responsabilidades, desde que o sucesso seja dele. Esta atitude leva a que os deputados do partido o apoiem na esperança dum lugar no futuro Governo.

Quem pesquisou ao pormenor a carreira de Johnson foi o correspondente em Londres do “The New Yorker”, Sam Knigt; diz ele que o nosso homem é uma combinação de autoconfiança e auto-sabotagem.

Aos 25 anos, Boris, menino de Eton, formado em “Estudos Clássicos” em Oxford, e recém despedido do “Times” por ter inventado uma história, conseguiu o posto de correspondente do “Daily Telegraph” em Bruxelas graças a uma cunha do pai diplomata. Geoff Meade, o chefe da delegação belga do jornal, diz que nunca se esqueceu do momento em que o jovem lhe apareceu com o cabelo às três pancadas e umas bermudas “gritantes”. Ao fim de seis meses no posto, Boris considerou que a cobertura dos procedimentos da cúpula europeia era entediante e começou a ridicularizar tudo nos seus artigos, supostamente noticiosos. A EU queria classificar os caracóis como peixes, normalizar o tamanho dos preservativos e o melhor era implodir o edifício do Parlamento... As suas histórias causaram sensação, mas quando os outros jornais as foram verificar, descobriram que era tudo treta. Mesmo assim, ou talvez por isso, tornou-se um ídolo dos euro-cépticos ingleses.

Quando confrontado com as suas invenções, respondeu: “Tudo o que escrevi sobre Bruxelas era como se estivesse a atirar pedras por cima do muro e a ouvir os vidros da estufa a partirem-se do outro lado, em Inglaterra.” Ou seja, contra a chatice, a imaginação. Tornou-se uma estrela, mas também uma caricatura, e o Daily Telegraph despediu-o. Michael Gove, colega brexiteer [favorável à saída do Reino Unido da UE] e amigo de longa data, define-o assim: “Boris tem a capacidade de se perder no meio duma frase, como uma criança na peça de teatro da escola. Mas queremos que ele seja bem-sucedido e quando consegue sentimos que fazemos parte desse triunfo.”

Andrew Gimson, antigo colega, diz que Boris tem a capacidade, rara nos políticos contemporâneos, de animar as pessoas. “Enquanto a maioria dos políticos querem aperfeiçoar a sociedade, Boris acredita que a humanidade é imperfeita, inclusive ele próprio. Não anda à procura de elevar o nível, nem espera isso dos outros.”

De volta para Londres, Johnson tornou-se director do “Spectator” uma revista snob, de direita, ligada ao Partido Conservador. Conrad Black, o patrão, perguntou-lhe como iam as coisas. Resposta: “Estou a tentar transformar a revista num biscoito. Assim um aperitivo antes da refeição, como uma explosão de chocolate. Tudo uma treta, mas é a imaginação que conta!”

Em 2001 foi eleito para o Parlamento, o que representava um conflito de interesses com o posto no “Spectator”. Quando confrontado com a situação, respondeu com a sua famosa frase: “Quero comer o bolo e continuar a tê-lo!” Sobre a mesma questão do conflito de interesses, disse a Lynn Barber, do “Observer”: “Não, não me demito. Vou tentar colar tudo com fita-cola e arranjar uma maneira de me safar, se for possível.”

Numa entrevista a Sue Lawley, num programa de televisão, definiu a sua filosofia da seguinte forma: “O meu chip, o chip da ambição, foi programado para trepar de qualquer maneira pela escada das situações... Acho que a sociedade britânica está programada desta maneira.”

Em 2008 foi eleito Presidente da Câmara de Londres, mantendo uma coluna semanal no “Telegraph”. A presidência, que ele levou mais ou menos como tinha levado a direcção do “Spectator”, não correu bem, porque se preocupava mais em aparecer do que em fazer. Mas sabia tirar partido mediático das desgraças. Em 2011, ocorreram grandes distúrbios por causa dum polícia ter morto um cidadão. Johnson estava de férias no Canadá e só voltou três dias depois. Quando chegou ao bairro de Clapham ver as lojas destruídas pela multidão em fúria, pegou numa vassoura e fingiu que estava a limpar os destroços. Foi um sucesso.

Quando ocorreram os Jogos Olímpicos (ganhos para Londres pelo seu antecessor, Ken Livingstone) Boris apareceu em toda a parte, geralmente em cenas ridículas com grande impacto mediático. Ficou famosa a descida por um “slide” em que ficou parado no ar, ridículo com um capacete de bicicleta, roupa desconjuntada e a segurar duas bandeiras inglesas.

Candida Yates, professora de cultura e comunicação na Universidade de Bournemouth, citada por Sam Knigt, define Boris Johnson como um político que aparenta subverter a ordem existente, mas cuja personalidade, muito britânica, amadorística e apalhaçada, não faz mais do que reforçá-la. “A personalidade política de Johnson é escorregadia. Faz com que as pessoas que têm poder, inclusive ele próprio, pareçam ridículas, mas isso não quer dizer que queira entregar esse poder a outros.”

Em Fevereiro de 2016, quatro meses antes do referendo, anunciou a um grupo de repórteres à porta da sua casa que era a favor do Brexit: “Ao fim de anos a escrever sobre isto, tenho finalmente a possibilidade de fazer alguma coisa. Vou defender o voto em leave [pela saída da UE] ou lá como lhe quiserem chamar, porque quero melhorar a situação das pessoas deste país.”

Mais tarde, sobre essa cena, diria que foi “uma enrascada (goatfuck) imperial”.

Apesar do Partido Conservador, liderado por Cameron, ser a favor de remain [da permanência do Reino Unido na UE], Johnson alinhou alegremente contra, num ambiente de confusão e desinformação ideal para o seu estilo.

Tal como tinha acontecido com os funcionários de Bruxelas vinte e cinco anos antes, a campanha dos remain não conseguia contradizer as frases de efeito de Boris. Toda a gente o achava divertido; havia quem acreditasse nele e quem não acreditasse, mas todos minimizavam as suas gafes e disparates com um “o Boris é assim.” Era visto como um enganador, mas um enganador esperto.

O seu estilo displicente permite que diga coisas graves, mesmo ofensivas, sem consequências. Por exemplo, quando Obama comentou que o Brexit seria mau para a economia britânica, escreveu na sua coluna que estava a mostrar “a antipatia ancestral pelo Império Britânico dum Presidente de origem queniana.”

Quando o resultado do referendo foi conhecido, em 24 de Junho de 2016, os principais brexiteers do Partido Conservador apareceram em público com um ar sério e preocupado. Johnson estava a jogar cricket na quinta dum amigo e no dia seguinte fez uma churrascada na sua.

Esperava-se então que Johnson ou Michael Gove ocupassem o cargo de Primeiro-ministro. Mas Johnson assustou-se e retirou-se da corrida. Ninguém queria tratar das negociações que se iriam seguir e acabaram por escolher uma senhora recatada que, achavam eles, seria mais facilmente manipulada, Theresa May. Que o escolheu, surrealisticamente, para Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Claro que nos meses em que esteve no cargo Boris só fez disparates. Num pagode budista em Myanmar recitou um poema de Kipling, o poeta do colonialismo britânico; disse que Nazanin Zaghari-Ratcliffe, uma anglo-iraniana presa em Teerão por espionagem estava apenas a ensinar jornalismo, quando a versão oficial e familiar era que se tratava de uma visita privada. Nazanin continua presa. Durante as negociações do Brexit perguntou em público: “Os franceses estão a tentar lixar-nos? Querem mais dinheiro?”. Houve gafes grandes e pequenas, como este vídeo feito em Portugal.

Finalmente, em Julho de 2018, quando May anunciou o seu famigerado "Acordo de Checkers”, Boris demitiu-se, afirmando numa carta que o “o Brexit está a morrer, sufocado por dúvidas auto-infligidas desnecessárias”. Aliás já tinha atirado, numa das suas frases famosas, que May apresentava-se em Bruxelas “como um general que vai para a batalha a agitar a bandeira branca.”

Caída May, Boris Johnson foi o primeiro a candidatar-se ao cargo. A sua primeira afirmação: “Saímos em Outubro, de uma maneira ou de outra.” Ou seja, com acordo ou sem ele.

O Reino Unido já conheceu bons primeiros ministros, verdadeiros ás de espadas, e maus ministros. Faltava-lhe um coringa. Todas as possibilidades estão na mesa, e nenhuma parece boa; mas, com Boris Johnson, só podemos esperar o inesperado.