Vejam estas cenas, escritas por EC, uma amiga minha:
“Então afinal, quantas pessoas iam para a praia de Carcavelos? Oito filhos, a mãe, o pai, o avô, o tio Zé, que no Verão vinha para nossa casa, e a criada Paula, que tinha vindo connosco do Alentejo. Íamos duas vezes por semana.
A minha mãe tinha umas mãos de “fada”, cozinhava maravilhosamente bem, e nas idas à praia aproveitava as sobras de carne e peixe, e fazia deliciosos croquetes e rissóis. Na véspera, era ela que preparava o farnel. A roupinha, incluindo o fato de banho, sandalinhas, eram colocados aos pés da cama. Não havia muito por onde escolher, reinava a parcimónia só tínhamos o indispensável.
Na véspera em que tudo tinha que ficar preparado, a partida era bem cedinho, nós, de tão contentes que estávamos fazíamos uma grande algazarra, que dava direito a umas bofetadas da mãe, para nos sossegar, acalmar os ânimos e desanuviar o ambiente. O meu pai, era o oposto da minha mãe, muito calmo, nunca nos bateu, mas acatava as bofetadas que ela nos dava sem dizer nada, .
Estamos no dia afortunado. Agora imaginem o espetáculo, os manos todos, os Pais, o Avô, o tio Zé e a criada, mais a tralha das sestas, com a comida para o dia todo, uma animada excursão.
E lá íamos todos contentes, os mais velhos tomando conta dos mais novos. O percurso até chegar à praia fazia-se nos transportes públicos, primeiro de autocarro até ao Cais do Sodré, aí tomava-se o comboio, que nos levava a Carcavelos. A mãe, a Paula os dois manos mais novos e a tralha das comidas iam de táxi até ao Cais do Sodré. Os táxis ou “carros de praça” à época eram pretos da marca Austin F x 4.
Como eram os autocarros? De cor verde, não de alface, mas mais a atirar para a azeitona. Tinham um ou dois andares, mas os que passavam à nossa casa nas avenidas novas eram de dois andares. Entrava-se e saía-se pela parte de trás que não tinha portas, apenas um varão vertical a meio. O motorista ia empoleirado encima da caixa do motor. Ao revisor, que vendia e picava os bilhetes, chamávamos o “pica”, "lá vem o pica!!!" Tinham vários preços e cores, consoante as zonas que percorríamos, havia de 5,10 e 15 tostões. Olhávamos sempre para o número do bilhete, se era capicua, guardávamos para a coleção, havia essa mania.
Os passageiros, quando queriam sair na paragem seguinte, não havia cá campainhas, puxavam uma corda preta que estava ligada a um sininho, que dava um toque sui generis. Depois o revisor dava duas pancadas nos varões metálicos do autocarro, para o condutor arrancar.
Como não havia porta, a rapaziada, mesmo que o autocarro já fosse em andamento, dava uma corridinha agarrava-se ao varão, e saltava para o carro. Acontecia por vezes, um percalço nestes saltinhos, e o pica, se via, dava instantaneamente três ou mais pancadas rápidas, para o condutor parar.
Na estação de comboios do Cais do Sodré o pai comprava os bilhetes para Carcavelos.
Estamos no comboio, e o espetáculo começa.
Os passageiros que entravam e se apercebiam da familiaridade daquele grande grupo, perguntavam: são todos irmãos? Eram afáveis, sorriam, faziam conversa. Despediam-se e desejavam-nos felicidades quando saíam.
Chegados a Carcavelos, a mãe, a Paula, os dois mais novos e os cestos com a comida iam de táxi até à praia.
Nós íamos a pé, era só um quilómetro de distância. O entusiasmo era tanto que segundo me lembro, não íamos a andar, mas também não íamos a correr, era o meio termo, íamos aos pulinhos, estão a imaginar a cena?
Chegávamos às barracas, alugavam-se duas para todo o dia, uma para guardar a comida a outra a roupa.
Depois passa o senhor que vende barquinhos, bolachas de formato de cone que se usam nos gelados, pára, olha para nós, temos ar de clientela. Coloca a sua caixa cilíndrica metálica de cor verde, com uma tampa rotativa, que rodávamos. Quando o ponteiro ligado à roda parava, indicava o número de barquinhos a que tínhamos direito, estilo jogo da roleta.
O tio Zé dizia-nos: façam três rodadas. Ficámos tristes, tínhamos tido pouca sorte, saíram poucos barquinhos. Vá lá mais uma rodada, a ver se têm mais sorte. Boa! Esta foi ótima! Agora, juntam-se todos os barquinhos, e mais logo distribuem-se por todos”. Obrigada tio!
Quando a mãe nos via correr para o mar, dizia: só molhar os pés, ainda é cedo para banhos. Estávamos a molhar os pés, e a fazer comentários sobre a temperatura da água, quando algum de nós dizia: olha os fantoches! Mais uma correria, para chegar à barraquinha, e assistir ao espetáculo de marionetes, sempre divertido e apropriado para crianças.
Entretanto iam passando as vendedoras de bolos, com caixas metálicas pintadas de branco. Abriam-se lateralmente, e numa das suas prateleiras as sempre apetecidas bolas de Berlim.
A seguir, apareciam os vendedores da batatinha frita, e por aí adiante…
Está a ficar muito calor vamos ao banho. Tenham cuidado, dizia o Pai. “Não há perigo Pai, a maré está baixa. Então era outra festa em grande.
Ao sair do banho interminável. Ao regressar, à barraca, depois de um grande banho, o pai dizia-nos: tenho aqui umas batatas fritas, agradeçam ao avô porque foi ele que as comprou. E nós em coro: obrigado avô, sabe tão bem depois do banho!…
Vamos fazer construções na areia, como aqueles meninos!
Lá íamos a correr para as construções, mas tínhamo-nos esquecido de trazer as pás, baldes e formas. Então, começava a cena do costume. Vai lá tu buscar as coisas à barraca, vai tu, depois de uma discussãozinha lá iam dois.”
A descrição original é mais pormenorizada e EC tem um grande sentido de humor, mas abreviei para chegar mais depressa ao que queria mostrar. E o que queria eu mostrar? Como era a vida estival há uns setenta anos atrás, cerca de 1950.
Setenta anos não é nada - uma geração, talvez - mas vejam como esta descrição está tão afastada da vida de hoje. Esta família era classe média, nem ricos nem pobres; a praia de Carcavelos continua lá, mas tudo mudou. As famílias assim tão grandes são uma raridade, ganharam um automóvel e perderam a fiel criada. Mas, mais do que isso, perderam-se as famílias, a vida em clã. Hoje a norma é pais e um ou dois filhos, com vidas intensas que não favorecem as intimidades, ficaram talvez as estaladas. E as corriqueiras mudanças de parceiros criam uma confusão de filhos que circulam entre duas casas, têm relacionamentos complicados entre meios-irmãos.
Pode-se elocubrar muita coisa sobre esta mudança entre a “família tradicional” e a “não-família” contemporânea. (Estou a falar na generalidade, mas as estatísticas confirmam que o modelo familiar europeu mudou completamente, em vários períodos do século passado. Em Portugal terá ocorrido gradualmente durante a década de 70, talvez acelerado pela Revolução, que contudo não foi mais do que motivo colateral.)
As vantagens são muitas: acabou o patriarcado dominante, que educava as crianças com severidade e não cultivava a intimidade entre os mais velhos e os mais novos; não havia conversas íntimas nem conselhos ou esclarecimentos sobre “aquelas coisas”. A independência da família, tanto moral como material, acaba mais cedo e muitas vezes os laços tornam-se apenas formais, nas festas do costume (Natal, Páscoa, férias na casa lá da terra). Não há que aturar familiares antipáticos e irmãos com quem não nos damos bem. Enfim, a vida doméstica passou a ser uma escolha pessoal, sem constrangimentos e considerações moralistas.
Mas os inconvenientes são por demais evidentes; acabou a “almofada” da segurança que dá ter uma casa onde se pode voltar, mesmo que não se queira nem se volte, desapareceu aquela intimidade que só os laços de sangue podem proporcionar, mesmo que mais psicológica do que real. Estamos à solta no mundo, livres para escolhermos amigos e nova família, mas sem os afectos, mesmo mal expressos, que davam uma certa segurança.
Os sociológos apontam inúmeras razões, provavelmente todas verdadeiras. Fazem-se menos filhos porque saem caros, as mulheres querem mais independência e todos, homens e mulheres, menos responsabilidade. Os anti-concepcionais e a IVG possibilitam a escolha. E menos filhos significa casas mais pequenas (e sem quarto para a “criada”), mais dinheiro para o lazer - para o qual acaba por não haver tempo... A semi-escravatura da serviçais foi substituída por empregadas autónomas, que cumprem horários a seu gosto e têm vida própria. Os casamentos já não são para a vida, as pessoas casam-se, ou juntam-se, mais do que uma vez, separam-se facilmente. Os velhos moram sozinhos ou vão para lares, geralmente maus. (Há estatísticas que comprovam tudo isto, mas não vou dar números, isto é um artigo de opinião, não uma tese académica.)
As pessoas acabam por estar mais sós, por sua conta, com menos tempo para os amigos e muito menos tempo para os familiares. Os netos não têm paciência para os avós, os filhos não aceitam directrizes dos pais. As férias, quando é possível, não são na “terrinha, passaram a viagens para sítios exóticos - e são mais curtas, mesmo no sagrado mês de Agosto, porque o trabalho é inescapável, imprescindível para manter o rendimento cada vez mais curto para as necessidades básicas. Não se vai ao cinema, vê-se streaming em casa. Não se lê, percorrem-se as apps de 30 segundos no telemóvel. Nos transportes públicos não se conversa, evita-se o contacto nos espaços à pinha. Não se vai à loja do bairro onde há uma certa intimidade com o lojista, frequenta-se o supermercado com empregados anónimos e apressados.
E depois, veio a pandemia, que já acabou mas deixou sequelas anti-sociais permanentes. E o aquecimento global, as guerras em toda a parte, as perspectivas sombrias. Não sei se já repararam, mas há um aumento nítido de agressividade no trânsito, na rua, no ambiente geral. A triste, porém pacata, vida social do antigamente foi substituída por uma vivência frenética, sempre a correr, sem tempo para pausas descontraídas.
Por princípio, e por temperamento, serei o último a dizer que “antigamente é que era bom”. Não, antigamente não era melhor. Mas actualmente é pior.
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