O atentado, cujos contornos ainda são difusos e a autoria desconhecida – embora só possa ter sido uma operação do Mossad – é o último episódio da mais importante questão do Próximo Oriente, a possibilidade de o Irão criar a capacidade de produzir armas nucleares. Na região, só Israel pertence ao restrito clube das potências atómicas, obviamente com fins defensivos; para o objectivo ofensivo de Telavive, que é a recriação da Israel bíblica, é inútil arrasar com bombas radioactivas os inimigos que o rodeiam. Mas se o Irão obtiver uma bomba, não parece impossível que a lance sobre Israel, que já provou ser indestrutível por meios convencionais – além de que bastaria uma única ogiva de bom tamanho para obliterar o país inteiro, pois tem uma área de vinte e poucos mil quilómetros quadrados. Um Irão atómico mudaria completamente o (des)equíbrio estratégico da região. Além de Israel, a Arábia Saudita, o grande inimigo sunita, seria certamente o alvo seguinte. 

A Revolução de 1979 transformou um Irão numa República Islâmica shiita, num poder regional expansionista e num inimigo agressivo do chamado Ocidente, dos países sunitas da região e, em especial, dos Estados Unidos e de Israel. À medida que se consolidava o poder dos iatolás, apoiados na omnipresente Guarda Revolucionária, o país passou de um grande território subalterno para algo parecido com o seu antepassado, a Pérsia, uma cultura agressiva e muito orgulhosa da sua identidade.

Na antiguidade, a Pérsia foi humilhada pelos gregos, e na modernidade por ingleses e norte-americanos. Agora, com este regime totalitário, convencido de que tem uma missão igualmente divina e material, o Irão quer ocupar o lugar a que se crê destinado. 

Como já aqui dissemos muitas vezes, é difícil esmiuçar o emaranhado de amizades, inimizades e alianças nesta parte do planeta, materializados numa hostilidade constante entre árabes, persas, sunitas, shiitas, kurdos, turcos e judeus, com a interferência competitiva de norte-americanos e russos, enquanto a Europa, como é seu estilo, oscila entre uns e outros. Os interesses patrióticos, religiosos e económicos misturam-se numa promiscuidade que leva a alianças secretas inimagináveis – como está a ser o estabelecimento de relações diplomáticas oficiais entre Israel e os seus inimigos, ficando-se a saber que já existiam relações por baixo da mesa há alguns anos.

Cada vez mais, aparece uma fissura entre o Irão e todos os outros, inimigos entre si, mas igualmente preocupados com a expansão de Teerão, que vai do apoio ao Hezbolah no Líbano, ao fornecimento de armas aos Utis no Iémen.

Os norte-americanos interferem sempre que é preciso; não só apoiam incondicionalmente Israel e a Arábia Saudita, como interferem no terreno quando acham que uma mão pesada resolve a situação. O seu maior erro estratégico – de uma longa série – foi a invasão do Iraque. Saddam Hussein era um patife, mas mandava no único país com massa crítica para conter o Irão. (Convém lembrar a sanguinária guerra de 1980-88, que começou com o Iraque a invadir o Irão, provocou cerca de seiscentos mil mortos e terminou num empate.) Depois do Iraque se desfazer, o Irão tornou-se o maior poder regional.

Os Guardas Revolucionários, um poder independente dentro do regime, controlam o país com mão de ferro, estão presentes em todos os teatros de guerra na Península da Arábia (através da “força Qud”) e têm a seu cargo o famigerado programa nuclear. Os Quds eram comandados por um homem particularmente hábil e activo, o general Qasem Soleimani, que os norte-americanos liquidaram com um ataque cirúrgico por drone, a 3 de Janeiro deste ano.

O programa nuclear é uma história autónoma. O primeiro reactor iraniano data da década de 1950, ainda nos tempos do Xá, construído pelos norte-americanos. (O mundo dá tantas voltas...) Mas depois da queda do Xá e do apoio ocidental foi praticamente congelado, para ressuscitar em 1981, já na mão dos Guardas Revolucionários. Desta vez, quem forneceu o material e o know-how foram a França e a Rússia. Era supostamente um programa pacífico, sujeito ao controle da Agência Internacional de Energia Atómica, um órgão das Nações Unidas. Contudo, desde cedo tornou-se evidente que as intenções não eram exclusivamente pacíficas e os inspectores da AIEA cada vez tinham mais dificuldade em fiscalizar a vasta rede de minas, reactores e fábricas de enriquecimento de urânio. Algumas instalações são subterrâneas, e acredita-se que existam outras ocultas na imensidão do país, que tem 1,648,195 km2. 

Finalmente o Irão saiu do controle da AIEA, aumentando os receios de que se estava a preparar para enriquecer urânio ao nível militar, o primeiro passo para produzir uma bomba. Paralelamente, o país tem um programa de mísseis, que possuem alcance para chegar até à Europa. Dadas as dimensões do território, em parte constituído por áreas montanhosas remotas, de difícil acesso, os estrategas norte-americanos concluíram que seria impossível destruir fisicamente o programa. Seguiu-se um conflito de outro nível; por um lado, um programa de restrições económicas muito pesado, com interdição de exportação de petróleo (a maior fonte de divisas do país), congelamento de contas bancárias internacionais e proibição de importação de bens essenciais, como produtos farmacêuticos; por outro lado, sabotagem das instalações e assassinato de técnicos responsáveis. A sabotagem foi feita através de um vírus (alemão, por acaso) no sistema informático nuclear. Os assassinatos têm sido conduzidos por Israel, com um interesse imperioso na desactivação do poder nuclear iraniano. Quando não chegam, os israelitas não hesitam em recorrer à força; em Junho de 1981 bombardearam um reactor a 17km de Teerão.

Em Abril de 2015, apertado pelas sanções, o Irão assinou o Chamado Plano Compreensivo de Acção, um acordo com os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Estados Unidos, Reino Unido, Rússia, França e China), mais a Alemanha e a União Europeia. A troco de abandonar as suas pretensões bélicas nucleares, o país viu levantadas a maioria das restrições.

Até 2018, os inspectores da AIEA concordaram que realmente o enriquecimento de urânio militar estava parado. Mas em Maio desse ano o Presidente Trump retirou os Estados Unidos do acordo, contra a vontade das outras partes. Desde então que os restantes países têm tentado renovar o tratado, mas, entretanto, o Irão, atazanado pelas sanções, sentiu-se no direito de voltar aos planos bélicos. 

Quem não pode esperar por uma reversão da situação é Israel. Benjamin Netanyahu, primeiro ministro desde 1996 (com uma interrupção entre 2000 e 2008), sempre deixou claro que os israelitas não vão em conversas ou acordos; fazem a sua vigilância particular, apoiados pelo serviço de espionagem melhor do mundo, o Mossad. Em 2007, numa entrevista à CNN, afirmou: “Só há uma diferença entre a Alemanha nazi e a República Islâmica do Irão; enquanto os nazis começaram por fazer a guerra e depois tentaram fazer a bomba atómica, os iranianos começam por fazer a bomba para depois começarem uma guerra mundial.” Em 2009, fez um discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas em que declarou, sem rebuço, que sempre que os iranianos estivessem perto de fazer a bomba, Israel atacaria como achasse melhor.

É neste contexto que acontece o atentado contra Mohsen Fakhrizadeh. Além de ser o principal director do programa nuclear, Fakhrizadeh aderiu aos Guardas Revolucionários logo em 1979 e tinha a patente de brigadeiro. Era uma figura importante do regime.

Poderiam ter sido os norte-americanos a efectuar a acção? Só se fosse com um drone, como fizeram com Qasem Soleimani. Não têm gente no terreno para este tipo de operação. Na verdade, ninguém tem, a não ser o Mossad. Provavelmente os israelitas informaram o Secretário de Estado Mike Pompeo quando se encontrou com Netanyahu, no dia 18, uma semana antes.

Quem ganha, e o quê, com a morte de Fakhrizadeh? Reconhecidamente, o seu desaparecimento não terá qualquer efeito no programa nuclear. O Irão tem inúmeros cientistas e técnicos competentes e um projecto destes não depende duma só pessoa. Os efeitos são outros. 

Para os israelitas, é uma maneira de avisar os iranianos que estão atentos e, o mais impressionante, que têm capacidade operacional para atacar qualquer alvo, em qualquer local do Irão. Fakhrizadeh, que é um símbolo do programa e anda sempre protegido, foi abatido nos arredores da capital, quando seguia de carro com guarda-costas. O atentado foi magnificamente montado. Primeiro explodiu um carro na estrada por onde ele passava, obrigando-o a parar. Quando ficou imóvel, um ou mais atiradores metralharam o seu carro até ele abrir a porta e cair no chão, morto. Ninguém foi apanhado e, ao que parece, os iranianos ainda não descobriram nenhuma pista – para além da evidência da autoria.

Para o Governo de Teehrão, para os Guardas Revolucionários e para o país, é uma afronta e uma vergonha. No enterro de Fakhrizadeh, o Presidente Hassan Rohani jurou vingança, mas realmente não se está a ver que vingança poderá equivaler ao agravo sofrido. E o Irão não está em condições de iniciar uma guerra.

Quanto aos norte-americanos, o Presidente Trump tem feito tudo o que pode e não pode para dificultar o programa no seu sucessor. Biden já disse que quer voltar ao acordo de 2015, no que é apoiado pelos outros signatários. Esta provocação vai-lhe dificultar a tarefa. Os iranianos eventualmente voltarão ao Plano Compreensivo, até porque precisam desesperadamente do levantamento das sanções, mas não se podem mostrar imediatamente cordiais depois de tal insulto.

Pode dizer-se, cinicamente, que o atentado foi um presente de despedida de Netanyahu ao seu grande amigo Trump, que até reconheceu Jerusalém como capital de Israel. Davam-se lindamente.

Às vezes os gestos simbólicos têm mais valor do que os resultados práticos.