O teatro geopolítico global redefine-se a cada grande conflito. Os períodos de paz desenrolam-se até uma fação considerar que se chegou a uma posição insustentável para os seus interesses. A fação vencedora tem o privilégio de influenciar novos territórios e populações que à partida não conseguia, de modo proporcional à vitória obtida. Com isto em mente, se olharmos para a Segunda Guerra Mundial, o maior conflito até à data, verificamos que os Aliados, a fação vencedora, não eram um grupo homogéneo. Juntos na mesa de vencedores, sentaram-se os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Soviética. Nesta guerra confirmou-se o fim da hegemonia europeia e a ascensão definitiva dos Estados Unidos e da União Soviética como superpotências. No entanto, as novas superpotências eram polos completamente opostos e não demoraram a projetar o seu poder e influência numa espécie de jogo de tabuleiro planetário. A Europa, passou de ser o continente que dominou o mundo quase em toda a história da civilização, para o troféu que consagrava a superpotência vencedora. O troféu, sabemos hoje, acabou nas mãos dos Estados Unidos, depois da vitória na Guerra Fria. Este desfecho, inspirou analistas a decretarem o “fim da História”. Bem… estavam errados!
Entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria há uma diferença fundamental: o destino do derrotado. A Alemanha Nazi sofreu uma derrota total e acabou dividida entre os vencedores e, atualmente, é uma pedra angular do Ocidente. Já a União Soviética desintegrou-se, mas teve na Rússia um estado sucessor, que se recusou juntar ao bloco vencedor. Ora, nunca estaríamos no fim da história, depois de um desfecho tão ambíguo. Não são necessárias aniquilações totais para obter verdadeiras vitórias, mas é necessário garantir que o inimigo torna-se aliado, caso contrário, será sempre uma paz podre. Especialmente caso haja ressentimento, como na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial ou, como na Rússia da atualidade. Podemos dizer que a invasão de Putin estava escrita nas estrelas, mas é só geopolítica pura e dura.
Mas não se explicam eventos desta dimensão com uma macro análise puramente geopolítica, temos de olhar também aos detalhes e tentar perceber o contexto particular dos decisores, no caso do ditador russo: Vladimir Putin. Eu aposto que ele, tal como todos nós, traça cenários hipotéticos na sua cabeça antes de tomar grandes decisões. Estou tão convencido disso, como do facto de que tudo está a ir contra o que ele imaginou. Reparem, ele deparou-se com as profundas crises do seu país, que contrastam com o sucesso do modelo de expansão da União Europeia e da influência americana através da Nato. A perda da influência na Ucrânia, podia ser fatal para a continuidade do seu poder autoritário na Rússia e tinha, na sua perspetiva, de agir. Ele reparou na crescente divisão política nas democracias ocidentais e num projeto europeu (que embora, a meu ver, tenha já méritos louváveis, diria até históricos, mas está) manifestamente inacabado. Bastava ocupar Kiev rapidamente e a Ucrânia era sua. Esta “conquista” seria um sismo propagado por toda a Europa, que até Washington sentiria. A Nato e a União Europeia podiam desintegrar-se ou ficar severamente enfraquecidas. Bom… felizmente, outro equívoco!
O Ocidente, apesar do que possa parecer, tem capacidade de se unir nestes momentos. Sim, temos discussões e fraturas constantes na nossa sociedade, mas existe um conjunto de valores que suscitam praticamente unanimidade. A Nato, de facto, aparentava ser uma instituição obsoleta sem nenhuma ameaça a pairar sobre os seus membros, contudo sobreviveu durante décadas de paz. Para além disto, há outro detalhe fundamental. O líder ucraniano teve tudo o que foi preciso nos primeiros dias da invasão: coragem, inteligência e capacidade de o demonstrar aos ucranianos e ao mundo. Imagino que Putin terá olhado para Zelensky e visto um comediante completamente desprevenido e incapaz de lidar com um conflito de larga escala. Era outra suposição sã, à primeira vista, que acabou por não se confirmar, perfazendo três suposições-chave erradas. Que azar para Putin! Que sorte a nossa…
A questão é que após o falhanço do plano inicial, eu acho que o ditador russo tem estado sempre a improvisar. Como já foi especulado: ele já perdeu. Do ponto de vista geopolítico, tudo tem corrido mal a Vladimir Putin: a Europa está mais capaz de se comportar como um bloco funcional internacionalmente; a Nato ganhou dois membros importantíssimos junto à fronteira russa; o exército russo soma baixas muito pesadas; a ilusão de que a economia russa é resiliente face às sanções ocidentais está a dissipar-se; os países, até agora neutros, estão cada vez mais distantes do estado pária em que a Rússia se tornou; o regime de Assad caiu e com ele, tudo indica, a base do exército de Moscovo no Mediterrâneo; e até países como a Arménia saem abertamente do bloco russo para se juntar ao ocidental. Putin só subsiste porque durante anos aniquilou a oposição interna, mas esta invasão mal calculada levou à maior ameaça ao seu poder, pelo menos que se conheça, quando Prigozhin tentou marchar até Moscovo com o seu grupo de mercenários. A vitória total ucraniana só está em causa, porque como podemos observar neste conflito, atacar é muito mais dispendioso do que defender e a Rússia mantém os territórios que conquistou logo no início da guerra (ou até antes dela, como quando anexou impunemente a Crimeia em 2014). Parece-me evidente que, ao contrário a União Soviética, que constituiu um adversário à altura dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, a Rússia de Putin, com uma economia comparável à da Itália em tamanho, nem sequer uma ameaça digna consegue ser. A União Soviética esteve à frente na corrida espacial, influenciou a política europeia (e é parte da razão para as claras diferenças entre a Europa e a América a nível político) e dominou até em certas áreas da sociedade, por exemplo, no xadrez. Atualmente, a Rússia não tem uma ideologia, nem sequer uma estratégia ou fio condutor coerente. Vai de remendo em remendo, passando agora pelos fracos remendos norte-coreanos, tentando mudar o rumo do destino, mas nada parece estar a resultar.
Para aqueles que se sentem desmotivados em apoiar a Ucrânia, devido aos pequenos avanços russos na linha da frente, tenham em conta o estado da economia da Rússia. O próprio ditador admitiu que a inflação é um problema; o rublo vale agora menos que um “penny” americano e ainda não viu o fundo do poço; o banco central russo viu-se obrigado a subir a taxa de juro para um recorde de 21% no final de outubro; o fundo soberano que tem sido a salvação da economia russa está a ser queimado lentamente e espera-se que em janeiro, tenha de levar mais um rombo para tapar o buraco das contas públicas; e a taxa e desemprego de 2% diz-nos que já não há mão de obra disponível no país. Isto são tudo sinais de uma economia que não está nada ao “rublo”. Portanto, apesar de ser difícil ver a Ucrânia recuperar o seu território na totalidade através da violência, temos de considerar que, eventualmente, Putin não poderá puxar mais pela capacidade de sofrimento dos russos, sem que o seu poder ou o próprio estado fique em sério risco. Nesse momento, talvez prefira perder definitivamente a guerra para não perder a Rússia…
A derrota de Putin não é só um imperativo moral, contra a violência, o barbarismo e o desrespeito absoluto pela dignidade humana, mas uma necessidade para o mundo poder progredir e virar uma nova página. Tal como a Ucrânia, que não poderia merecer mais a vitória, tal tem sido o espírito inabalável do seu povo, vários países têm sofrido às mãos da influência russa (por exemplo, a Geórgia). A questão, depois da Guerra Fria, devia ser se uma Europa democrática e livre se pode afirmar como um bloco alternativo aos Estados Unidos, já que temos diferenças substanciais. Este bloco poderia ser um farol de esperança para os países menos desenvolvidos, até porque, se reparamos com atenção, apenas a União Europeia tem verdadeiramente promovido o desenvolvimento e o progresso dos seus vizinhos. Todavia, ainda não tivemos essa sorte, a de ver uma Europa geopoliticamente independente, porque a Guerra Fria não ficou bem resolvida. Consequentemente, se depois da agressão injustificada à Ucrânia, a oligarquia russa e Putin não perderem (e visto que, neste momento, já nunca verdadeiramente ganharão) esta Guerra Fria 2, vai ser sempre seguida de uma Guerra Fria 3. Isto se não tivermos o azar de serem guerras mais quentes…
Nos próximos meses, não desesperem e atentem nos sinais positivos. Sempre que vos disserem, ou que pensarem, que uma derrota de Putin ou uma Rússia democrática é impossível, lembrem-se: a História fala-nos de Czares que caíram por muito menos azares!
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