Tenho 29 anos e sou sócio do Benfica há 25. Quando falo do Benfica, costumo começar assim, para que me poupem os “verdadeiros benfiquistas” às teorias da conspiração. Não sei o que é um “verdadeiro benfiquista”: eu sou só benfiquista, e nunca me lembro de ter sido outra coisa.
Hoje, com a equipa num caco, com o treinador na rua, com um plantel evidentemente diminuído e com o logro do “Benfica Europeu” devidamente exposto enquanto tal, não nos falta quem salte a cerca e venha ter aqui à bancada dos que não querem Luís Filipe Vieira à frente do Benfica. Sejam bem-vindos, estamos à vossa espera há muitos anos.
Não me entendam mal: gritei e vibrei com todos os grandes momentos que vivemos nos últimos anos. Gosto tanto do Benfica que até celebro vitórias manchadas de indignidade, como algumas destas últimas. Não consigo evitar: se um jogador do Benfica encosta uma bola na rede, os músculos da minha cara contorcem-se num sorriso, o meu punho encerra-se e o ar dos meus pulmões atravessa-me as cordas vocais invocando um “Golo” em forma de grito. Não há bandido que eu não abrace, nem desconhecido que não me apeteça beijar. O Benfica não é só o meu clube, é uma reação natural do meu corpo.
Habituei-me a ir à velha Luz com o meu pai, ver o Benfica jogar com clubes que já desapareceram. Lembro-me do golo do Poborski contra o Braga como se o tivesse visto hoje de manhã. Lembro-me de ir ao Hotel Penta (seria metáfora de um sonho ainda por cumprir?) recolher autógrafos aos jogadores. Como conhecia o porteiro, ele deixava-me entrar e lá ia eu, criança, atrás do Nuno Gomes e do Fernando Aguiar, do Hélder e do Armando Sá, à procura de uns rabiscos num papel. Foi também à porta do Penta (que talvez fosse já Marriott) que a mão gigante do Bossio me puxou para cima do passeio, tirando-me da frente de um táxi: porventura, a sua melhor defesa ao serviço do Benfica. Guardei durante muitos anos esses autógrafos, bem como as revistas do Benfica com entrevistas ao Machairidis, ao Uribe, ao Sabry, ao Escalona, todos acabados de chegar ao Benfica, cheios de sonhos que nunca cumpriram.
O Benfica jogou quase sempre mal à bola até à minha adolescência e eu nunca fui tanto do Benfica como nesses tempos. Queria muito ganhar e festejar. Quero muito que o Benfica ganhe, sempre. Mas o meu amor ao Benfica não tem nada a ver com os resultados. Quem gosta do Benfica porque o Benfica ganha não é adepto do Benfica, nem de clube nenhum.
Por isso – porque os resultados do Benfica não fazem oscilar as minhas convicções em relação ao clube – nunca gostei do Vieira.
Lembro-me de ter 10 anos e de me dizerem na escola que o Vieira do Benfica (que nessa altura ainda “só” mandava no futebol) tinha roubado um camião. Achei que era tudo mentira (as coisas contra o Benfica eram para mim, nessa altura, sempre mentira). Mas depois cresci e li as notícias dos jornais da altura (uma delas assinada por um tal de Pedro Guerra, que depois se tornou defensor do presidente), e que davam conta de que esse tal Vieira, hoje presidente-rei do meu clube, tinha sido julgado e condenado por roubar a tal viatura, não tinha demonstrado arrependimento e não tinha cumprido a pena de prisão a que foi condenado, beneficiando de uma amnistia. Acredito muito na recuperação dos presos. A Vieira, para se considerar recuperado, faltou-lhe passar pela prisão. Não passou, ainda.
À vergonha de ter um meliante condenado à frente do meu clube seguiram-se anos e anos de negócios de jogadores mal explicados.
Quem se lembra do guarda-redes Roberto, contratado por 8,5 milhões, fazendo uma época desastrosa e sendo “vendido” no ano seguinte por 8,6 milhões ao Saragoça (“com lucro!”), quase todos “pagos” por uma “sociedade não identificada”? E depois, em 2013, “vendido” novamente ao Atlético de Madrid por 6 milhões? Como é que se vende o mesmo jogador duas vezes? Fácil: ficámos a saber que o Saragoça afinal não pagou nada (“bandidos!”) e, por conta disso, Roberto era ainda jogador do Benfica, facto que benfiquista nenhum conhecia. Entre uma venda e outra, renovámos contrato com a dita estrela, pela bela quantia de 1,2 milhões de euros por ano. Quanto perdeu o Benfica, para além da dignidade? Entre mortos e feridos, ficámos sem saber.
Quem não se lembra dos camiões de jogadores que vieram e saíram, qual campo de refugiados desportivos, não deixando, muitos deles, sequer o rastilho de uma lembrança? Andrés Diaz (quem?), Patric (2 milhões), Élvis (oi?), Michel, Fariña (2.2 milhões), Mukhtar, Mitrovic (1.1 milhões), Jorge Rojas (1.25 milhões), Luís Filipe (2 milhões), Djavan, Candeias, João Amaral (600 mil), Rakip, Milos, Felipe Menezes, entre outras tantas dezenas de homens que envergaram uma camisola que devia estar reservada apenas para alguns, que devia ser sagrada mas que qualquer um vestia. Tentei não mencionar os irmãos do Matic e do Markovic, que o embaraço também me limita a denúncia.
Contingentes de anónimos que fizeram do Benfica um autêntico carrossel de comissões a agentes, de transferências mal explicadas, de negócios obscuros e de tentativas de tomar os sócios por estúpidos. O Vieira fez do Benfica um clube pequeno, porque só um clube pequeno dá contrato a qualquer um.
Vieira, condenado a pena não cumprida, transformou uma instituição centenária, histórica, que desperta paixões calorosas, crenças quase-religiosas, num mau supermercado de jogadores de futebol.
Mas o Benfica foi ganhando dinheiro (os supermercados são lucrativos, porque há sempre quem tenha de comer) e com o dinheiro foi comprando as armas que nos ganharam os campeonatos. Era quanto bastava para muitos benfiquistas, desses que vendem a alma ao diabo por meia dúzia de títulos nacionais.
Pelo caminho, transformou o Benfica numa ditadura: blindou os estatutos para dificultar a candidatura à presidência, afastando da corrida à presidência melhores benfiquistas do que ele. Eu pago quotas há 25 anos e os estatutos do meu clube não me reconhecem o direito de concorrer, por exemplo. Foi trazendo para a sua esfera de influência todos os que lhe podiam ou foram fazendo frente, do Moniz (antes putativo candidato, hoje vice-presidente) ao Rangel (antes adversário, hoje “suspeito de ter prometido favorecer o filho de Luís Filipe Vieira num processo judicial, a troco de um lugar na Fundação Benfica”) , do Rui Costa (putativo sucessor, hoje administrador esquecido da SAD) ao Pedro Guerra (de acusador público a paladim). Os que não comprou, afastou, como fez com Nuno Gomes ou António Simões.
Em paralelo, o escândalo da Porta 18 (“não temos nada a ver com o que fazem os nossos funcionários”), o caso dos vouchers, o perdão da dívida pelo Novo Banco (outra amnistia, paga com os nossos impostos), o caso dos emails, e dos padres, e da toupeira (“não temos nada a ver com o que fazem os nossos funcionários”, A Sequela), o apertão de pescoço a um adepto em plena AG, as agressões verbais a outro, a operação Lex (“quando sair do Benfica vou mais pobre, não vou mais rico”), e, cereja no topo do bolo, a banhada que ia dando ao clube com a OPA.
Essa OPA vieirista, inútil do ponto de vista estratégico, mal justificada, financeiramente desastrada, pretendia comprar por 5 euros ações que não valiam nem metade. Contaram-se umas lérias sobre recompensar os sócios que ajudaram o clube, mas a verdade é que a operação continuava a ser tão inesperada quanto ridícula.
Pouco depois, o Expresso noticia que o maior acionista individual do Benfica tem negócios de milhões com Vieira, alguns tendo a filha do presidente como testa de ferro; acionista esse que comprou as ações a 1 euro e que as iria vender agora a 5 euros, não fosse a imprensa dar com a boca no trombone e a CMVM ter andado a arrastar os pés.
De repente, está explicada a OPA: dar dinheiro do Benfica ao sócio do Vieira. Tirar do clube para dar ao amigo. Amizades à Sócrates. "Eu nem ia comer nada", disse o amigo do Vieira, já com a colher da sopa enfiada na boca. Se precisamos de melhor exemplo de que a raposa está na capoeira, não vamos ter. A OPA foi cancelada, tornando claro para todos o que já estava implícito há muito tempo: o Benfica não é liderado por gente séria. Sou do Benfica, e isso já não me envaidece.
Escrevo este artigo consciente de que o Benfica atravessa uma crise desportiva e que isso fragiliza esta liderança. É uma boa altura para refrescar a vossa memória, quando a todas estas indignidades se junta uma profunda insatisfação com os resultados. Contudo, escrevo-o sobretudo para sublinhar que esta liderança não serve para o Benfica independentemente dos resultados – e não apenas porque não ganhámos onze dos últimos treze jogos que disputámos.
Se olharmos para os resultados apenas, a liderança do Vieira será sempre mais ou menos positiva no quadro das últimas décadas. Falhou de forma crassa no Benfica europeu, sim, mas se os jogos com o Sevilha e o Chelsea tivessem sido um bocadinho diferentes, essa conversa seria outra, mesmo com todas as vergonhas que passámos na Champions. Deitou fora o nosso sonho do penta, certo, mas para lá chegar ganhou quatro campeonatos: quantos o fizeram antes dele?
Se nos perdermos a discutir os resultados, o Vieira tem sempre alguns argumentos para se sustentar. Eu não quero saber dos resultados do Vieira. Ele não serve para o Benfica porque não é uma pessoa de cadastro limpo, de reputação séria e que represente aquilo que o Benfica deve representar na sociedade portuguesa: o desportivismo, a luta pela transparência, a promoção da competitividade, a valorização do espaço público, a higienização do debate futebolístico, a firmeza de convicções, a promoção de valores democráticos e o amor ao clube.
Não aceitaria um presidente sujo nem que este fizesse do Benfica campeão europeu, da mesma forma que não roubo camiões a uma pessoa só porque ela me deve dinheiro.
Eu não quero um presidente que pensa que é dono do Benfica, que muda as regras para se eternizar no cargo, que usa o dinheiro do clube para encher os bolsos de outros clubes e agentes, que nos mente a torto e a direito, com as vendas que não faz, com os plantéis que não constrói, com os títulos que promete, com as falcatruas que se lhe descobrem, com as dívidas que não paga.
Isto soa tudo um bocadinho romântico, porque chegámos a um ponto em que acreditamos, coletivamente, benfiquistas, portistas, sportinguistas, todos, que para se ter sucesso no futebol é preciso ser sujo, é preciso pagar luvas, fazer negociatas, berrar, criar cabalas, ligar a árbitros, meter dinheiro nos clubes mais pequenos, comprar votos na Assembleia da Liga. Quem acreditar no contrário, “não vive neste mundo”. É isto que é “ser homem da bola”.
E é assim, através da normalização da corrupção, que estes bandidos tomam conta do futebol, em Portugal e no estrangeiro (veja-se a FIFA, uma das organizações mais corruptas do mundo), alimentando-se da nossa paixão, tornando os clubes em empresas altamente lucrativas para uns quantos, marcando jogos para as nove da noite de segundas-feiras, fazendo o pino para agradar a uns agentes, moscambilhando resultados de sorteios, matando o futebol.
Matando o futebol, pá. O nosso futebol.
O futebol, o jogar à bola, o um-dois, a desmarcação nas costas do defesa, o livre direto ali onde a coruja faz o ninho. O futebol, aquilo que nos leva ao estádio, que nos agarra a um clube. Isto é tudo. Sem isto eles não existem: não existem adeptos, não existem receitas, não existe interesse, não existe nada. É um negócio sem valor.
Recuso-me a acreditar que o Benfica, que ganha títulos nacionais há 90 anos, precisa do Vieira – ou de gente como ele – para nos dar as alegrias que nós queremos ter em campo.
O Vieira sem o Benfica não é nada, e ele sabe-o. É mais uma mentira que nos prega quando diz que “vai pensar” o seu futuro no Benfica. O Vieira vive em pânico com a realidade que o espera quando sair do Benfica. E bem: a história não lhe reservará fama diferente da de um outro presidente que o antecedeu.
O Benfica, sem o Vieira, já era a maior instituição portuguesa no mundo. E continuará a ser, se o conseguirmos salvar a tempo. Porque não duvidem: o Vieira afunda o Benfica se precisar disso para se salvar.
Benfiquistas, companheiros de vitórias e de derrotas: já estamos atrasados. Presidentes para a vida é noutros clubes: o Benfica tem de ser melhor que isso. Não quero trocar a dignidade do meu clube, a reputação do meu clube, por meia dúzia de campeonatos. O Benfica tem mais de cem anos, e um dia terá mais de duzentos e mais de trezentos. Que instituição queremos ter para os nossos filhos apoiarem? De que Benfica queremos falar aos nossos netos? Eu cresci com a cantiga de que o “Porto é corrupto e é por isso que ganha”. Estão os putos de hoje em dia a ouvir o mesmo sobre o Benfica? E podemos, com honestidade, surpreender-nos e indignar-nos? Não podemos, e como isso me envergonha.
Já chega. Venha o próximo, que estaremos cá para julgar e substituir se não estiver à altura, como fazemos desde sempre. As pessoas passam. Os campeonatos ganham-se e perdem-se. Os jogadores vão e vêm. A bola rola, nós cantamos. Na alma, a chama imensa. Benfica? Até debaixo de água. Sempre.
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