Só tinha 11 anos e a vida toda pela frente…

Fui tratada e recuperei. Pensava que o pesadelo tinha terminado e que iria ser uma miúda normal, como as outras. Mas estava enganada! As taxas de sobrevivência, felizmente, aumentam a cada ano que passa, mas infelizmente sobrevivência não é sinónimo de normalidade, mas sim de muitas incertezas…

Podem questionar-se: “Então, mas se já estão curados, afinal do que precisam?”.

Cerca de 2/3 dos sobreviventes apresentam, pelo menos, uma sequela do cancro e/ou dos tratamentos agressivos a que foram submetidos. Isto para não falar dos traumas psicológicos: imaginem uma criança de 12 anos a chegar à escola, sem cabelo… Acreditem, 30 anos depois ainda tenho pesadelos com isso!

Precisamos de um acompanhamento médico feito nos centros de referência de tratamento oncológico, para não ter de explicar a um médico de família, pela enésima vez, o que é um autotransplante de medula.

Já existe, no IPO de Lisboa, um embrião do que precisamos: a consulta dos DUROS (Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso). A cada sobrevivente é atribuído um dos médicos da Pediatria que faz serviço na consulta. Fazemos os exames considerados essenciais pelo médico e, caso seja necessário, somos encaminhados para outra especialidade.

Muitas vezes, isto implica ter de perder dias no trabalho ou na escola. Muitos dos sobreviventes acabam por desistir das consultas, porque se sentem bem e querem ter uma vida normal. É uma situação preocupante, pois algumas das possíveis sequelas a longo prazo são assintomáticas e aparecem muitos anos depois do tratamento, o que torna premente o acompanhamento médico por quem sabe, por oncologistas.

Nos outros centros de referência de oncologia pediátrica, como no Hospital de São João, no IPO do Porto ou no Pediátrico de Coimbra, não existe este acompanhamento estruturado, ou seja, os sobreviventes de cancro infantil não têm uma consulta especifica para eles. Alguns mantêm-se com o pediatra que os acompanhou desde o início (que poderá um dia reformar-se ou mudar de hospital), mas muitos são encaminhados para o médico de família ou para outros especialistas. É importante implementar um serviço de acompanhamento de qualidade a todos, independentemente da zona onde vivem.

Existe também um projeto muito importante, atualmente a ser trabalhado por muitos países europeus, que é o Passaporte do Sobrevivente. Trata-se de uma ferramenta digital onde consta toda o histórico médico. Este documento poderia ser disponibilizado pelo sobrevivente sempre que, por algum motivo, tivesse de ir a uma urgência médica no seu país de origem ou até no estrangeiro. Este é um projeto que está em fase de testes em algumas cidades europeias.

Outro tema muito importante para nós é a questão dos seguros. Para comprar uma casa, por exemplo, é preciso, para a grande maioria de nós pedir um empréstimo. Mas pedir um empréstimo ao banco implica fazer um seguro de vida, e as seguradoras exigem aos sobreviventes de cancro infantil valores incomportáveis, que chegam a ser superiores em 200% ao preço normal, com exclusões de coberturas de invalidez ou morte, isto se não for pura e simplesmente, negado.

Será que somos portugueses de segunda porque tivemos um cancro? A doença de uma pessoa não pode ser um fardo eterno que tenha de carregar. Os sobreviventes de cancro têm direito à igualdade e é necessário garantir os direitos de todos.

Por isso, França, Bélgica e Luxemburgo criaram a “Lei do Esquecimento”: a partir de um determinado intervalo de tempo, depois do final dos tratamentos, os sobreviventes de cancro deixam de estar obrigados a indicar que o tiveram quando solicitam seguros de vida ou de saúde. Por exemplo, em França o intervalo é de 5 anos.

Será que somos menos portugueses só porque sobrevivemos a um cancro?

Por uma ou outra razão, estes temas não têm estado na agenda política.

Os Barnabés (nome que a Acreditar dá a todos aqueles que vivem ou viveram uma doença oncológica até aos 25 anos) trabalham com a Associação Acreditar nestes assuntos que são tão importantes para todos nós.

O mês de Setembro é particularmente relevante para os Barnabés e para a Acreditar – é o mês internacional de sensibilização para o cancro pediátrico. Este ano com o lema, “O cancro não me define”, assinalámos este mês através de vários eventos virtuais, e em segurança, onde se tentou mais uma vez mostrar à comunidade que o cancro infantil existe, mas não nos pode definir, tem que ter o mínimo impacto na vida de quem passa por ele (doentes, família e amigos). E quem melhor que os sobreviventes para exigir mudanças?

Tive oportunidade de sentir que os Barnabés têm a voz mais poderosa de todas. Há pouco tempo, num evento público, tive de fazer uma intervenção e resolvi falar sobre a sobrevivência depois de um cancro pediátrico. Fiquei abismada quando percebi que se fez silencio, e que os telemóveis ficaram pousados no colo, quando me apresentei como sobrevivente de cancro infantil. Falar publicamente sobre a sobrevivência a um cancro na infância e as dificuldades consequentes é sentir o silêncio ensurdecedor e incómodo daqueles que, por momentos, escutam estas palavras na primeira pessoa e são colocados perante uma realidade que talvez desconheçam.

Por isso, deixo um apelo a todos os sobreviventes como eu: usem a vossa voz, para que todos os meses sejam dourados, e não apenas Setembro. Para que a doença oncológica pediátrica e a melhoria das nossas vidas passe a ser uma prioridade na agenda política.

Dizem que sou e fui uma guerreira por ultrapassar um cancro na infância. Na altura, não me sentia uma super heroína. Sempre achei que o meu médico (que batalhou para que eu fosse para Londres fazer um autotransplante), a minha mãe (que teve a coragem para deixar tudo, meter-se comigo num avião para um país desconhecido com uma língua estranha), o meu pai e o meu irmão foram os verdadeiros guerreiros. Eu limitava-me a ficar deitada a receber a quimioterapia e a radioterapia...

Hoje, já não tenho essa ideia. Eu fui, também, uma guerreira e continuo a ser, mas não quero que o cancro me defina. Quero que seja a minha bravura perante a adversidade e a forma como a ultrapassei. Sou uma guerreira porque continuo todos os dias a combater as sequelas e as barreiras que me colocam neste caminho da sobrevivência.


Rita Merenda, sobrevivente de cancro pediátrico

A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 25 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.