As relações entre os homens e as mulheres, que existem em toda a parte onde há uns e outras, não são as mesmas em toda a parte. Variam, e muito, conforme a cultura – entendendo-se por cultura um conjunto de princípios religiosos e morais, teorias institucionalizadas e práticas prevalecentes.
Nos Estados Unidos, uma cultura que se sente desconfortável com questões de sexualidade, sentimentos e emoções, a notícia de que os homens poderosos abusam de mulheres desprotegidas – uma situação que toda a gente sabe que sempre existiu mas de que nunca ninguém queria falar – causou um verdadeiro tsunami, primeiro na indústria cinematográfica, e logo a seguir em todas as indústrias e comércios, amadores e profissionais, desde a arte (música, dança) ao desporto (olímpico e profissional). Surgiram movimentos, como o #metoo e o #timesup, listas, abaixo-assinados e muitas, mas mesmo muitas, confissões e retratações. Carreiras brilhantes nas artes e ciências, negócios e lazeres, foram por água abaixo num ápice, mesmo sem julgamentos formais. Neste momento, basta uma denúncia anónima, ou quase anónima, para queimar uma carreira promissora ou estelar.
Passada a primeira avalancha de denúncias, começam a surgir dúvidas quanto a certas situações. E o caso que iniciou essas dúvidas é o de Aziz Ansari, que marca o início do ricochete, tal como o de Weinstein disparou a bala.
Ansari é um comediante americano de origem indiana e muçulmana (os pais vieram de Tamil Nadu) com grande sucesso nos Estados Unidos devido às séries “Parks and Recreation” e “Master of None”, que ele próprio escreveu. É autor de dois livros e já participou em programas famosos da produtora Comedy Central. Acaba de ganhar um Globo de Ouro, o primeiro indostânico/americano a consegui-lo. Uma estrela, sem dúvida.
Pois bem, no dia 13 deste mês o site Babe.net, especializado em grandes e pequenos escândalos para adolescentes, publicou um relato das atribulações de uma tal Grace às mãos de Ansari. Só que desta vez – e pela primeira vez – a acusação de violação não produziu a condenação unânime habitual. Antes pelo contrário, deu origem a uma série de opiniões, na Internet e na comunicação social, sobre se a avalancha de denúncias sobre assédio e violação não teria ultrapassado o razoável para se tornar numa oportunidade de vingança para corações destroçados. Caitlin Flanagan, uma conhecida socióloga e analista de comportamentos entre géneros, chamou mesmo à história de Grace contada no Babe.net “revenge porn” – o termo utilizado para os rejeitados que publicam fotos comprometedoras das ex-namoradas/os.
Partindo do princípio que o relato de Grace é verdadeiro, temos aqui, precisamente, um exemplo real de como os americanos têm dificuldade em lidar (e classificar) casos que envolvam sentimentos e sexo – em bom português, situações de “atiranço” ou “engate”.
Grace, uma “fotógrafa de Brooklyn com 22 anos”, muito candidamente, reconhece que ao encontrar o famoso Aziz numa festa se atirou a ele insistentemente. E que no final lhe deu o seu número de telefone, ao que se seguiu uma semana de paleio mensagístico de parte a parte. Finalmente Aziz convidou-a para jantar – lagosta, que ela fotografou alegremente, num restaurante da moda. Beberam vinho, uma coisa que entre nós faz parte de qualquer refeição familiar, mas que nos Estados Unidos, num primeiro encontro, já indicia que algo mais que um mero jantar pode acontecer. Em seguida convidou-a para ir ao apartamento dele. Ela aceitou. Mais vinho. Beijos roubados. Mão naquilo, aquilo na mão. Beijos nisto e naquilo, seguidos de mais qualquer coisinha. E mais vinho. A certa altura, já os procedimentos iam avançados, ela “sentiu-se desconfortável”. Não queria avançar tanto, disse-lhe. Ele parou. Grace foi à casa de banho refrescar-se. Quando voltou, mais insistência com mãos aqui e beijos acolá, até que ela disse que não queria mesmo. Aziz mandou vir um Uber e lá foi a menina para Brooklyn a chorar. Não era aquilo que ela esperava.
O que ela esperava, não se sabe ao certo. Talvez ver um episódio da série “Seinfeld” – o que aliás aconteceu, no meio do vai que não vai – e conversar sobre a cultura da batata. Talvez um pedido de namoro ou um “vamos ser amigos”. O que ela não esperava, ao aceitar ir ao apartamento dele depois dum jantar de lagosta com muito vinho, era que Aziz, voltamos às nossas bem portuguesas expressões, se fizesse ao piso. Sobre expectativas frustradas, qualquer portuguesa, europeia e, até, muitas americanas, poderiam dar lições a Grace. O que não fariam, certamente, era pespegar a história na Internet, com uma inocência que raia a pouca vergonha.
Aziz, ao ser confrontado com a história, disse que tinha achado tudo consensual – enfim, quase tudo, uma vez que o tudo não aconteceu. Aliás, quando depois ela lhe mandou uma mensagem a queixar-se, pediu desculpa e disse ter percebido mal os sinais. Pois, lá como cá, há quem diga que não, para não facilitar demais e para tornar o sim mais emocionante.
Mas já ninguém tira a Aziz a mácula de ter posto a mão e outras partes na mão e boca de uma inocente de 22 anos que foi ao apartamento da estrela para ver o brilho mais de perto.
Noutras culturas, como a nossa, esta história nem seria história, apenas uma noite que deu para o torto. Mesmo na cultura norte-americana, há quem considere que foi isso mesmo, “bad sex” e não coacção ou importunação sexual propriamente ditas.
Levanta também a questão do poder das mulheres; são fracas fisicamente, num episódio de terror, ou institucionalmente, numa situação subalterna; mas têm a força de poder destruir uma reputação sem mais provas do que a sua opinião.
O diabo está nos pormenores – e na ausência de testemunhas.
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