A mercearia da minha avó Leonor e do meu avô Faustino, em Peniche, foi um dos sítios onde cresci: ia para lá enquanto os meus pais iam trabalhar e, quando já podia ir sozinho para a escola, passava por lá muitas vezes — e brincava no largo à frente da mercearia, com um chafariz que ainda hoje me deixa enternecido. A mercearia em si foi mudando ao sabor dos hábitos do país e das regras inscritas nas leis — quando eu era pequeno tinha um ar bem mais antigo, de mercearia a sério. Hoje em dia é um minimercado.
Todos almoçávamos lá muitas vezes, numa cozinha que a minha avó ainda tem. Pois cheguei a essa cozinha um dia e, na televisão que estava em cima do frigorífico, havia uma coluna de fumo a subir pelos telhados de Lisboa — o Incêndio do Chiado. A minha família olhava para a televisão em silêncio. Lisboa estava a arder…
Por via da literatura, da televisão, da rádio e das visitas, quase todos os portugueses conhecem Lisboa. Ouvimos os nomes das ruas e avenidas, conhecemos os bairros, nem que seja por ouvirmos as notícias do trânsito de manhã. Esta familiaridade com a cidade leva a um fenómeno curioso: quando alguém que tenha nascido e crescido em Lisboa se encontra com alguém de outra cidade ou vila do país, é provável que o lisboeta saiba muito menos da terra da outra pessoa do que o contrário. Lisboa é cidade de todos, mesmo de quem nunca lá viveria.
É o que acontece com as maiores cidades — fazem parte da paisagem mental de muito mais pessoas do que os seus habitantes. Também me acontece o mesmo com o Porto: há por lá nomes que já me eram familiares muito antes de lá ter ido.
Também por isso aquele incêndio no Chiado nos custou tanto a todos, lisboetas ou não. Lembro-me de ir visitar o Chiado algum tempo depois e ver as paredes calcinadas através dum passadiço de ferro, como se estivesse a visitar a campa de um familiar um pouco distante, mas bem presente.
Já noutros países… Lembro-me dum episódio que se passou comigo em Barcelona, anos depois, quando em amena cavaqueira com um catalão, que me mostrava fotos duma viagem que fizera a Lisboa, ele me vem com esta, perante uma fotografia do Mosteiro dos Jerónimos: «Bem, isto foi antes do incêndio…».
Eu, intrigado com esse tal incêndio que destruíra os Jerónimos, perguntei do que é que ele estava a falar. E ele, intrigado com o português que nunca ouvira falar do grande fogo, disse-me: «Ora, do incêndio de 1988!».
Digamos que nós, portugueses, reconstruímos os Jerónimos enquanto um diabo esfrega o olho. Já o mesmo não se pode dizer do Chiado, que bem demorou. Mas um fogo imaginado na cabeça de um catalão destrói sempre menos do que um fogo bem real…
Lá contei ao meu amigo que o fogo não chegara a Belém. Enfim, ele sabia que tinha havido um incêndio em Lisboa — e em 1988! Não é coisa pouca. Que não soubesse a exacta geografia do incêndio parece-me desculpável.
O Chiado não era na cidade dele. Na verdade, também não era na minha cidade — na altura, não vivia em Lisboa. Mas ouvia o nome muitas vezes, aquela geografia aparecia-me nos livros que lia na escola, visitava aquelas ruas nas famosas visitas de estudo. O Chiado fazia parte da minha infância — talvez sem a nitidez do chafariz em frente da mercearia da minha avó, mas como se fosse um bairro um pouco mais distante da minha própria cidade. Um bairro que ardeu há 32 anos.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é o Almanaque da Língua Portuguesa.
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