O que é uma família? Presentemente, são inúmeras as respostas possíveis, há quem mantenha uma ligação umbilical com os seus progenitores e restantes familiares; há quem opte por viver intensamente uma família lógica, obliterando a importância da biológica. Recordo-me desta pergunta, feita por um rapaz de cinco anos: “Tenho de gostar dele porque é meu tio?”

As famílias implicam sempre uma certa obrigação. E cerimónia. Nada contra uma ou outra, considero louvável a capacidade de manter uma linha de respeito e educação para com as pessoas que amamos. Essa linha obriga-nos a respeitar, a concordar que discordamos com bonomia e sem zanga, controla o volume de voz nas discussões mais acesas, faz com que tenhamos de estar atentos.

Num país em que a violência entre pares impera com a força de uma hostilidade crescente (basta ver as estatísticas sobre violência doméstica ou violência no namoro), fazer cerimónia é uma contenção crucial. Os outros não são o nosso saco de boxe. Gritar não ajuda em nada. Ouvir é difícil, a maioria das pessoas não tem grande talento para ouvir os outros com concentração e, especialmente, sem interromper. Não é o Natal que irá fazer de nós bonzinhos, é evidente, mas nesta época há uma certa tendência para harmonizar o que, tantas vezes, não tem qualquer resolução dentro do espírito da boa vontade.

Chegamos então à hipocrisia social que as famílias precisam de exercitar nesta época, em prol de um bem maior. E relativizamos: é só uma noite por ano – ou duas, para quem mantém as celebrações no dia 24 e 25 de Dezembro. Aquela pessoa com quem não temos empatia estará à mesa, aquele que, em tempos, foi desagradável também estará e por aí fora. Este é o cenário negro e rezingão. Há outro ou outros. Podemos escolher ver a nossa família e os membros que a compõem sob um prisma positivo, com alegria e amor, esquecendo deliberadamente todas as ofensas (discurso, aliás, muito em voga nesta altura do ano). Quem pertence à nossa família alargada – a família nuclear é outra coisa – carrega consigo um pouco da nossa história. E as famílias são também isso: historiadoras, testemunhas da nossa vida. Aquela tia que andou anos com uma fotografia da sobrinha na carteira; o primo que se recorda da enorme queda de bicicleta; a mulher do tio que nos ofereceu um livro que mudou a nossa vida; a cunhada que nos acolheu nas inúmeras diferenças. Este cimento amoroso que cria memória e identidade falha, pode falhar, contudo, com alguma cerimónia, talvez conseguisse sobreviver às agruras da vida que, regularmente, se impõem às famílias.

Muitas vezes, as famílias partem-se. Há zangas por orgulho, por preconceito, por dinheiro, até por questões políticas. Sendo triste, ajuda a clarificar as nossas relações e despe-nos de algumas obrigações que são meramente hipócritas. Os nossos afectos procuram outros alvos.

Ao longo da vida vamos seleccionando as nossas pessoas e criando a tal família lógica que são os amigos que nos acompanham ao longo do ano. Os mesmos amigos que comemoram o estar junto à volta de peru recheado que uns tantos não apreciam, mas que acatam com cerimónia e bonomia, se reúnem para celebrar a vida, a teia de afectos que nos cola, na certeza de que estaremos juntos de novo no terminar do ano e depois nos Reis e no resto que 2019 proporcionar, o maior número de vezes possível. Sem prejuízo da família nuclear, a família lógica é de extrema importância e ajuda-nos a manter alguma sanidade. Por isso, como escreveu Alberto Caeiro, dá-me uma mão a mim e outra a tudo o que existe. Eis uma ideia feliz para o final do ano. Diria que importa saber que é melhor dar a mão a quem nos merece e agarrar o mundo pelo gasganete de forma a viver o melhor possível.