Todas as eleições o cenário repete-se: a abstenção em Portugal, e em muitos outros países, é sempre elevada. Desta vez, perto dos 70%, apesar de terem votado mais pessoas do que nas anteriores. Quem vota queixa-se de quem não vota, quem não vota queixa-se de quem vota nos mesmos. Os partidos queixam-se da abstenção, mas não fazem qualquer esforço para inverter a tendência, apostando em campanhas vazias de ideias e cheias de intrigas. Não sou apologista da abstenção, nem este texto é um incentivo a que fiquem em casa em dia de votar, atenção, acho que todos deveríamos votar, sim, mas acho que a culpa da abstenção é um mito. Vamos por partes:
Votar é igual a ser bom cidadão
Não, não é por se votar que se é um cidadão exemplar. Conheço tanta gente que se gaba de votar e que depois foge aos impostos sempre que pode. Aliás, quando pensarem que votar, por si só, faz de alguém um bom cidadão, lembrem-se que o Sócrates era sempre dos primeiros a ir às urnas. Meter uma cruzinha e dobrar um papel em quatro não é suficiente para se poderem gabar de serem bons cidadãos, a cidadania é avaliação contínua e não só exame final em época de eleições. Ah, e tirar fotografia ao boletim para as redes sociais é apenas masturbação intelectual.
Se todos votassem seria diferente
Será? É aqui que entra o paradoxo da abstenção. Quem parte do pressuposto de que quem não vota são cidadãos de segunda categoria, desinformados e que se estão a borrifar para a democracia, não pode achar que quem se abstém deveria ter ido votar. Queremos mesmo que pessoas desinformadas vão votar? Se achamos que quem se abstém não tem interesse no futuro do país para que queremos que vão votar? Como é que as coisas seriam melhores se a afluência às urnas tivesse mais 70% de pessoas politicamente e democraticamente ignorantes? Não faz sentido. A abstenção deveria agradar a quem vota, pois, o direito a ela serve como triagem dos burros, seguindo essa lógica.
Depois, se todos votassem seria diferente? É difícil saber, mas podemos especular: as sondagens são relativamente precisas quando feitas com boas amostras, mesmo que pequenas; 30% de pessoas a votar e uma excelente amostra do todo e, provavelmente, os resultados percentuais seriam exactamente os mesmos. Foram feitos alguns estudos e sondagens nos Estados Unidos, em várias eleições, em que perguntaram a várias pessoas que se abstiveram, qual o candidato com que mais simpatizavam e em que votariam caso fossem obrigadas a isso. O resultado? Estatisticamente, o desfecho final seria o mesmo com 50% ou com 0% de abstenção.
Vota antes nulo ou branco
Péssima gestão de tempo. Se é para ir votar branco ou nulo, mas vale ficar em casa. O voto branco ou nulo é apenas para tranquilizar a consciência porque, na verdade, tem zero efeitos práticos. Se os votos brancos ou nulos tirassem orçamento aos partidos ou elegessem cadeiras vazias, faria sentido. Assim, de nada serve. Se 50% da população fosse votar branco ou nulo o que aconteceria? Repetiam as eleições? Duvido. Se repetissem e fosse 100% de votos nulos o que aconteceria? Nada, o presidente formava governo com os amigos e ficava tudo na mesma. Atenção, acho que moralmente e até filosoficamente, votar nulo ou branco é melhor do que nos abstermos, mas, na prática, têm exactamente o mesmo feito. Nenhum. Sim, teoricamente, talvez o voto em branco seja uma melhor forma de protesto do que a abstenção, mas achar que algo que não tem efeitos é um protesto é tanto ou mais facilitismo do que ir à praia em vez de votar.
A abstenção tem a culpa
Não sabemos. Há muitos movimentos nacionalistas e populistas a crescer porque motivaram pessoas que se costumavam abster a ir votar. Bolsonaro foi eleito com 20% apenas de abstenção. Sim, sei que o voto é “obrigatório” no Brasil, mas há outros casos em que baixa abstenção equivaleu a crescimento de extrema-direita ou esquerda. Mais uma vez, se quem se abstém é politicamente ignorante, então mais vale não ir votar.
O voto devia ser obrigatório
Este pensamento é um bocadinho antidemocrático. A democracia pressupõe o direito a não votar e o direito, até, a não concordar com ela. Por exemplo, eu sou a favor da ditadura se for eu o ditador. Colocar o voto obrigatório é incentivar a votar por votar só para não perder regalias ou não sofrer consequências. No Brasil o voto é, em certa medida, obrigatório e não é por aí que têm sido feitas boas escolhas nas urnas, como escrevi no ponto anterior.
Se não votas não te podes queixar
Não faz sentido. Imaginem alguém que sempre votou, mas que não conseguiu ir devido a um imprevisto. Não se pode queixar durante o mandato? Só se pode queixar depois das próximas eleições? Parece-me estranho. E alguém que iria votar branco ou nulo, mas que preferiu abster-se? Não se pode queixar, sabendo que o resultado eleitoral seria exactamente o mesmo caso tivesse ido votar? Estranho, também. Votar é ir a um restaurante com um grupo de desconhecidos e cada um pedir um prato; o prato mais votado é servido. Podes pedir sardinha e ter de comer bifana. Ora, quem iria votar sardinha, mas já sabe que as bifanas vão ganhar – porque ganham sempre –, pode ficar em casa e esperar que o Uber Eats venha entregar. Tem de comer o que os outros escolheram, tal como quem foi votar sardinha. Logo, podem todos queixar-se, menos os que escolheram bifana, especialmente se já a tinham comido em jantaradas passadas.
Se a abstenção fosse um partido ou um grupo de pessoas com os mesmos interesses, então, sim, não se poderiam queixar. No entanto, a abstenção é composta por acontecimentos separados e mutuamente exclusivos, muitos que se estão a borrifar – a maioria –, outros que o fazem em protesto e, cada um deles, como indivíduo, pode e deve queixar-se, pois há formas muito mais eficazes de protesto do que votar. Por exemplo, posso, até, queixar-me que o lodo onde a política se movimenta me tem tirado a vontade de ir votar.
A abstenção não é o problema, a abstenção é o resultado que passou a ser um problema
Como disse, não sou a pró-abstenção, acho que todos deveriam votar, mas faz-me comichão ver políticos a falar da abstenção sem fazerem nada para a mudar. Faz-me confusão enfiarem todos os que se abstêm no mesmo saco e usarem-nos como bode expiatório. Parecem uma namorada que trai o marido e depois o acusa de estar ausente, tentando desviar a atenção do cerne da questão que é o facto de todos já termos sido enganados por falsas promessas de políticos.
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