Por razões que só a estupidez humana justifica, as alterações climáticas tornaram-se uma questão ideológica. Basicamente, e para não entrar em pormenores excruciantes sobre a incompetência da espécie em se salvar duma catástrofe, a “direita” recusa a responsabilidade do Homem ou nega as evidências, e a “esquerda” acusa o sistema capitalista “selvagem” de colocar o lucro acima da sobrevivência.
Na verdade, ao nível das nações, não é a governação autocrática ou democrática que embaraça a discussão; é o interesse nacional, ditado pelos diversos estágios de desenvolvimento de cada país. Assim, as economias ricas, que atingiram a maturidade, podem arcar com os custos implícitos numa reorientação da produção de energia, enquanto as economias pobres não podem prescindir dos aumentos de poluição necessários ao crescimento do seu bem-estar.
Um grupo de cientistas de Reino Unido e Holanda publicou um relatório afirmando que “as ondas de calor que atingem Europa e América do Norte teriam sido virtualmente impossíveis sem a mudança climática”. As ações humanas também deixaram o calor extremo na China “pelo menos 50 vezes mais provável”, segundo os investigadores. Além disso, 75% dos eventos climáticos avaliados pelo grupo se tornaram-se mais prováveis ou mais graves por causa das transformações. Dados preliminares da Organização Meteorológica Mundial indicam que o começo de julho foi a semana mais quente já registada no planeta.
Haverá sempre pessoas, incluindo cientistas, que negam o óbvio. A ciência está notoriamente longe da imparcialidade sobre os factos científicos; no decurso do seu desenvolvimento, cheio de egos inflados e passos contraditórios, muitas teorias foram ardorosamente defendidas e depois substituídas por outras opostas. Já afirmou que a Terra era plana, depois que era o centro do Universo, e a seguir que era apenas uma minúscula partícula do cosmos. Antes da fisiologia moderna, achava-se que o corpo tem “humores”. Os cientistas inventaram e desenvolveram indústrias materiais miraculosos, como o amianto ou o plástico (entre tantos outros exemplos) que depois provaram ser altamente nocivos.
Mas, se não se pode confiar na ciência, também não se pode esperar muito dos decisores políticos, dominados pelos “grandes interesses económicos”, essa força difusa que inclui grandes investimentos pessoais e corporativos e que realmente existe, para lá do vocabulário anti-capitalista da esquerda. (Na realidade o capital é uma componente inevitável da actividade produtiva, seja ele privado ou público. Nos países comunistas quem toma as decisões capitalistas é o Estado, com o mesmo desapego pelos interesses dos trabalhadores que nos países democráticos.)
Voltando aos fogos: não é necessário relatá-los todos, o que a comunicação social tem feito aplicadamente; basta lembrar, na saison deste ano, os do Canadá, cujo fumo chegou aos Estados Unidos e à Europa, e os da Grécia, Espanha e Portugal. A este podemos juntar outras catástrofes ligadas com alterações climáticas, como cheias extraordinárias (Eslovénia, Alemanha, Noruega, Dinamarca).
Uma ciência que tem evoluído bastante, sobretudo devido a modelos gerados por computador e a medições por satélite, é a meteorologia. (Os dados obtidos são concretos, as teorias sobre os porquês é outra história.) Há várias entidades multinacionais dignas de registo, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, o Centro Europeu para Previsões de Tempo a Médio Prazo (ECMWF) e a Atribuição do Tempo Mundial (WWA). Todos são unânimes na medição das alterações climáticas provocadas pela actividade humana, com destaque para os combustíveis fósseis, petróleo, gás e carvão.
Citando o WWA, “o mês de Junho foi o mais quente já registado no mundo. Grandes áreas dos EUA, México, Europa e China sofreram calor extremo em julho. (…) A temperatura passou de 50°C no Vale da Morte, na Califórnia, e o calor bateu recordes também em partes da China e da Europa. (…) Na Europa, 61.000 pessoas morreram de calor em 2022”.
Considerando a questão da influência humana nas alterações climáticas como um dado adquirido, os governos e organizações inter-governamentais têm estabelecido metas, definidas em tratados - o mais famoso é o Acordo de Paris , assinado em 2015 por 196 países. Nele se estipula o objectivo de baixar a temperatura média mundial para menos de 2ºC acima do nível pré-industrial (antes de 1850) e limitá-la a não mais do que 1,5ºC acima desse nível. Este limite de 1,5ºC, devido à emissão de “gases de estufa”, deve atingir o máximo em 2025 e declinar 43% em 2030.
Como toda a gente já percebeu, os objectivos do Acordo de Paris não estão a ser cumpridos. Alguns governos têm reconhecido o facto e estabelecido outras metas, igualmente ideais, à medida que a realidade dos países sub-desenvolvidos (e alguns desenvolvidos) e os “incidentes”, como a Guerra da Ucrânia, justificam os atrasos.
Mas a realidade é mais dramática. Segundo um artigo do “The New York Times” - o jornal mais credível do mundo capitalista, convém lembrar - o mundo industrial, petrolíferas à cabeça, está-se absolutamente nas tintas para o aquecimento global, tão nas tintas que até já afirma publicamente que as necessidades energéticas não podem estar cativas das necessidades ambientais. Para citar apenas algumas partes do artigo:
“A indústria (petrolífera) bem pode declarar os seus esforços para reduzir emissões e procurar fontes de energia verdes. Esses esforços esmorecem em comparação com o que estão a fazer para aumentar a produção de petróleo e gás. Segundo a Agência Internacional de Energia, o investimento da indústria em combustíveis limpos está a aumentar, mas fica muito aquém do que deveria ser. Em termos globais, as empresas de petróleo e gás projectam gastar este ano mais de 500 mil milhões de dólares na busca, extração e produção de combustíveis fósseis, e ganhar um valor muito maior em dividendos para os seus acionistas. (…) Contrariamente à sua retórica, o comportamento dessas empresas sugere que acreditam que uma transição para uma produção de energia limpa não irá acontecer, ou que, se acontecer, reduzirá os seus lucros.”
O artigo descreve pormenorizadamente vários casos, incluindo empresas que são públicas, isto é, detidas por governos.
As fracas iniciativas a decorrer apostam mais em limpar os resíduos do que eliminá-los. Fazendo uma desagradável analogia com um furúnculo, é como limpar o pus em vez de debelar a inflamação. Ou colocar um penso da ferida, para a ocultar, em vez de a cicatrizar…
O bom senso pode levar a perguntar se essas pessoas - sim, porque as decisões das empresas são feitas por pessoas - não pensam que também serão vítimas duma catástrofe que, tal como a morte, atinge igualmente ricos e pobres. E a resposta, penso eu, é não, eles não pensam. Acham que os abrigos anti-nucleares que construíram em áreas menos susceptíveis de sofrer, como a Nova Zelândia e os jactos intercontinentais privados que levarão os seus para lá, ou os super-iates à prova de tudo os manterão protegidos de qualquer catástrofe ecológica, atómica ou mesmo cósmica. Com desculpas pela franqueza, o lema é “o vulgo que se lixe”. O dinheiro em quantidades colossais favorece esta miopia sociopata.
O que se pode fazer contra isto? Nada, realmente. Não há sistema político, ideologia ou revolução social que possa proteger o Homem do seu maior inimigo, ele próprio. Pode ter-se esperança, a última que morre enquanto se está vivo! Acreditar que há um paraíso para lá deste vale de lágrimas, também ajuda.
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