Era uma vez um escorpião que pediu a um sapo que o ajudasse a atravessar um rio. O sapo recusou, pois o risco de ser picado pelo escorpião e de morrer na travessia era grande. O escorpião, todavia, garantiu-lhe que isso não iria acontecer — ou não fosse fatal para o próprio, que não sabia nadar. O sapo acedeu, o escorpião apanhou a boleia e... finaram-se os dois a meio do caminho. Moral? Por vezes é mesmo difícil escapar à nossa natureza.
Apliquemos esta fábula ao grande caso da semana: a recusa dos 13 militares da Marinha em embarcarem no NRP (Navio da República Portuguesa) Mondego para fazer o acompanhamento de um navio russo a norte da ilha do Porto Santo, desautorizando o seu comandante. Os visados defenderam não ter condições para fazer a missão, citando problemas técnicos na embarcação, desde um motor inoperacional à ausência de sistemas de esgoto; o comando superior não foi da mesma opinião e abriu processos disciplinares internos, além de um raspanete muito duro emitido publicamente pelo chefe do Estado Maior da Armada, o almirante Gouveia e Melo.
Quer se dê razão a um lado, quer a outro, uma coisa é certa: o caso veio destapar problemas que há muito grassam no seio das Forças Armadas Portuguesas.
Podem dois lados da contenda ser ambos o escorpião? Façamos a defesa desta visão sobre o caso.
De um lado, os 13 militares. Sim, foram alvo de processos e rendidos de imediato após o sucedido, o que tem o seu quê de humilhante dentro da estrutura militar. Sim, vão ter de prestar declarações à Polícia Judiciária Militar na próxima segunda-feira, 20 de março. Sim, vão ser arrastados para casos que têm implicações tanto a nível civil como criminal, situação onde virtualmente ninguém se quer ver envolvido. E sim, em última análise verão a sua carreira comprometida.
Não se sabe ainda ao certo quais terão sido as suas verdadeiras motivações: se genuinamente preocupadas com a sua segurança e alimentadas pelo sentimento de injustiça de estarem em serviço sem o que consideram ser condições mínimas, se fomentadas por um sentimento de impunidade e insubordinação.
No entanto, veja-se que não estão sozinhos. Há estruturas de base do seu lado. A Associação Nacional de Sargentos, por exemplo, apressou-se a prestar solidariedade aos 13 militares, considerando que a sua desobediência foi o resultado de negligência pela sua segurança, que “isto não foi uma crise no momento, foi fruto de muitas situações já vividas a bordo”.
Além disso, levantou acusações à estrutura de querer abafar o caso, fazendo um julgamento a priori dos visados. “A Marinha mostrou mais vontade em matar o mensageiro do que em resolver a situação”, disse Lima Coelho, o presidente da ANS.
Essa ideia foi subscrita por Paulo Graça, advogado dos 13 marinheiros, denunciando o "julgamento na praça pública" que tem sido feito pela Marinha. Em entrevista ao Público, Paulo Graça disse também que Gouveia e Melo incorreu ele próprio em infracção disciplinar, já que “as sanções devem ser aplicadas preservando a dignidade do sancionado, o que aqui não aconteceu”, havendo, ao invés, uma forma de humilhação pública.
Ou seja, é inteiramente possível que os marinheiros saiam desta situação como mártires granjeados pela simpatia pública por terem tido a coragem de reivindicar os seus direitos, mesmo que de forma pouco ortodoxa.
Isso leva-nos ao possível outro Escorpião, Henrique Gouveia e Melo. Do seu lado está o facto da inspeção ao navio Mondego determinada pela Marinha ter concluído que a missão ao largo da Madeira era "realizável em segurança". Mas todos sabemos que o que joga a favor do almirante é mais do que um mero relatório técnico.
O país não esqueceu o seu papel como ex-coordenador da task force para a vacinação contra a Covid-19, seja na forma como o processo foi um sucesso sob a sua liderança, seja pela sua conduta sóbria mas assertiva — recordemos os protestos de negacionistas de que foi alvo — que foi sujeita a múltiplos elogios. Como tal, o seu nome, apesar de alguma perda de popularidade, continua entre os favoritos numa eventual candidatura à Presidência da República.
O capital de simpatia que recolheu permanece alto. E é por isso que, quando Gouveia e Melo vem a público dizer algo, as pessoas ouvem, porque a sua gravitas não desapareceu. Ora, quer isto dizer que quando diz aos jornalistas que “a Marinha não pode esquecer, ignorar, ou perdoar atos de indisciplina, estejam os militares cansados, desmotivados ou preocupados com as suas próprias realidades" ou que os marinheiros cometeram um ato de “uma gravidade muito grande”, isso é algo que deixa mossa.
"Eu não vou fazer julgamentos precipitados, o que eu vim aqui dizer é que não são admissíveis atos de indisciplina”, ressalvou, mas o tom com que o disse, aliado ao seu prestígio público, pode ter levado a que muitas pessoas que o ouviram tenham desde logo traçado as suas conclusões.
Nesse caso, Gouveia e Melo assume-se como o chefe experiente e esclarecido, preocupado com a perda de prestígio internacional de Portugal perante os aliados, combatendo atos de desagregação no seio da instituição que preside — “não há Forças Armadas sem disciplina. A disciplina é a cola essencial das Forças Armadas”, frisou — e admoestando a ‘canalha’, fazendo dos marinheiros visados exemplo. “Nós não mandamos missões impossíveis, agora parte destes militares achou que estavam em risco. Isso é a avaliação deles, mas não lhes compete a eles fazer essa avaliação porque são militares que não têm o conhecimento global nem da missão nem dos compromissos nem do verdadeiro estado global do navio”, defendeu.
No entanto, recuperando o argumento acima explanado, esta forma de pedagogia ácida pode sair-lhe pela culatra. Gouveia e Melo arrisca-se a passar de salvador da pátria dos tempos da pandemia a ator corporativista, mais interessado com as instituições do que com as pessoas, fazendo desabar a persona humanista que construiu entre 2021 e 2022.
Tanto os militares como o almirante são Sapo e Escorpião nesta história, consoante o prisma por onde se olhe. Mas não há dúvida que um terceiro protagonista nesta história se limitou a coaxar.
Quer se olhe para os militares, quer se olhe para a Marinha, ambos os lados têm sobre si a sombra do Governo português. Depois dos oficiais de justiça, dos médicos, dos maquinistas, das forças de segurança, dos professores, dos enfermeiros e da função pública, só faltava surgirem atos de repúdio público por parte dos militares para fazer o Bingo deste último ano de executivo.
É verdade que o OE2023 já tinha previsto o reforço das verbas para manutenção para as Forças Armadas — ainda que menos do que tinha sido anunciado. No entanto, pode ler-se o ato dos 13 marinheiros como o corolário de anos de subinvestimento, tal como tem vindo a acontecer noutras áreas de atividade.
Apesar de estar a falar num contexto de apoio logístico à Ucrânia devido à guerra, a ministra da Defesa acabou por admitir em entrevista ao Diário de Notícias na semana passada que o país passou por “décadas de desinvestimento” e que “faltam-nos munições, faltam-nos equipamentos variados para poder operar os meios que temos, precisamente porque desinvestimos, porque as indústrias não produziram e porque vivíamos em tempo de paz”.
Nessa mesma conversa, Helena Carreiras admite que o Orçamento do Estado deste ano não foi mais além no apoio à defesa porque “aquilo que temos é o que podemos ter, num contexto em que o país tem de lidar com muitas áreas que precisam de ser reforçadas num momento de crise económica”.
A polémica motivada pelo caso do NRP Mondego, porém, veio demonstrar que, uma vez mais, há dinheiro — ou melhor, faz-se saber que há dinheiro — quando o Governo é forçado a reagir à controvérsia. Dois dias depois de sabido o episódio, o Conselho de Ministros publicou uma resolução em que autoriza 39 milhões de euros para a manutenção dos navios de patrulha oceânica da classe Viana do Castelo e das fragatas das classes Vasco da Gama e Bartolomeu Dias.
A resolução data de 2 de março, mas foi apenas publicada a seguir a saber-se do caso. Pode ter sido uma coincidência, tal como terá sido um acaso o Governo finalmente aprovar a proposta de Lei de Programação Militar que teimava em não sair. Esta prevê um montante global de investimento de 5.570 milhões de euros até 2034, o que representa “um aumento de 17,5% face à lei em vigor”.
Foi esta a reação governamental. Em atos e não em palavras, porque estas foram um lavar de mãos de responsabilidades. António Costa disse que é ao chefe da Armada a quem cabe assegurar disciplina e ordem nas suas forças, bitola seguida pela ministra da Defesa, que fez saber que “é da competência da Marinha aferir as circunstâncias dos acontecimentos bem como a operacionalidade dos meios, e conduzir procedimentos do foro disciplinar de acordo com o Regulamento da Disciplina Militar”.
O que é certo é que do próprio topo da Marinha vieram queixas de carestia, mesmo que com um tom polido.
Questionado se deveria haver um maior investimento nas Forças Armadas, Gouveia e Melo disse que não foi “eleito democraticamente para decidir sobre isso”. ”O que eu tenho de achar é o que é que eu preciso ou não e informar o respetivo Governo”, apontou.
Na mesma intervenção em que denunciou a conduta dos 13 marinheiros, o almirante admitiu hoje estar descontente com o estado real dos navios da Marinha, que disse ser do conhecimento do Governo. "Se estou contente com o estado da esquadra? Não! Se estamos a trabalhar empenhados, todos, em alterar esse estado de coisas? Sim!", atirou.
Que “o estado de coisas” venha a ser alterado, é o que falta perceber.
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