Água. Estive vai-não-vai para escolher «areia» como primeira palavra. Verão que é Verão mete areia. Só que a areia, deliciosa à distância, incomoda-nos pelo corpo todo — prefiro meter água nesta primeira letra. Ah, sim, é tão bom estar deitado na toalha, sentir o sol a passar-nos as pálpebras, o sabor do mar nos ouvidos. Depois, com a pele quente, correr até sentir a água no corpo. É essa água que vale a pena e compensa toda a areia metida onde não deve.

Biquíni. Entre as miragens do calor no mar e os gritos das crianças na praia, estamos todos mais ao natural. Confessemos: nem sempre é bonito — mas, pelo menos, liberta-nos das roupas e deixa-nos com menos vergonha de nós próprios. E há as vezes em que os corpos que passam até são uma das delícias do Verão — embora eu, míope, quando vou para a praia e quero nadar no mar tenha de deixar os óculos em terra, transformando assim a humanidade num vago amontoado de manchas desfocadas. Mas não faz mal: o mar apetece na mesma e ouvem-se os gritos das crianças.

Calor. O Verão tem os seus encantos — e são esses que canto aqui — mas também os seus horrores. E um dos horrores é trabalhar com o calor a bater nas ruas duma cidade, quando já muitos foram embora e os que ficam derretem-se em impaciências, encerrados no trânsito daqueles que ainda não foram de férias. O que vale é o ar condicionado… 

Dança. Sou um desajeitado a dançar. Mas sei que o Verão tem muito de música — e essa música inscreve-se na nossa memória com uma força que não suspeitamos enquanto a dançamos numa noite quente. A música é uma autêntica máquina no tempo, transportando-nos como um soco para outros Verões e outras idades. Experimente o leitor ouvir uma música que estivesse na berra num Verão da sua adolescência e verá o que quero dizer.

Estrada. Sair de casa e fazer-nos à estrada — fazer quilómetros para longe, para longe… E arriscar quase sem saber: porque as estradas, no Verão, são um viveiro de condutores de domingo e de portugueses em fúria, a querer chegar primeiro à praia.

Fúria. Tinha tantas palavras para esta letra: «férias»; «família», «festas»… Mas também há isto: «fúria». A fúria de chegar, a fúria de aproveitar, a fúria porque as férias não correm como queremos, a fúria de acabar. E ainda isto: com a fúria à flor da pele, aos amores de Verão temos de contrapor as zangas de Verão.

Golo. O Verão também é época de jogos da Selecção, pelo menos de dois em dois anos. Este ano ficou tudo adiado para o fim do ano. É a vida.

Horas. Os dias passam de forma estranha durante as férias. Se formos de férias duas semanas, os primeiros dias servem para nos prepararmos para a segunda semana — e a segunda semana passa num sopro na lembrança de que estamos quase a voltar. Os dias passam depressa — mas depois há um dos mistérios do tempo: as horas, essas, sabem muito bem, sem reuniões, aulas ou escolas à espera dos filhos. Dias fugazes com horas eternas. As férias.

Ir. Sim: ir — sem destino, nem mapa, nem plano. Ou melhor, ter planos, mas deixá-los de lado à primeira oportunidade. Ir de carro, de barco, de avião, de comboio — ou a pé, a engolir com os olhos uma qualquer cidade.

Jacarandá. O Verão português também é isto: os jacarandás em flor, a explodir em roxo o habitual verde das avenidas. É uma árvore deliciosa, que cheira a Verão, a pincelar as nossas ruas — até o próprio nome da árvore é delicioso, ali num cruzamento entre um jacaré e um maracujá. (Mas bom, bom é, por uns dias, ir para longe dos nossos queridos jacarandás e sentir no nariz o cheiro do mar e do protector solar, ou não é?)

Longe. Sim, estar longe. Todos sabemos que estar na praia ou na piscina na nossa cidade não é a mesma coisa…

Mapas. E haverá melhor do que olhar para o mapa (ou, pronto, para o GPS do telemóvel) e seguir com o dedo as estradas por onde haveremos de passar? O melhor das férias, por vezes, acontece mesmo antes de partirmos.

Noite. Ainda hei-de falar das estrelas, dos terraços, dos grilos, do luar no mar. As noites de Verão são dos maiores prazeres da vida.

Óculos. Para mim, o Verão também são os óculos a escorregar pelo nariz, os óculos em cima da toalha da praia, os óculos — vejam lá bem — a cair no fundo do mar em episódios que agora não interessam anda. São também os óculos escuros de quem passa, a esconder o melhor da cara, mas sem conseguir disfarçar o sorriso matreiro que nos desce à face durante o Verão.

Pinhal. A costa portuguesa tem este sabor, que se sente no cheiro dos pinheiros nas nossas narinas, no machucar da caruma debaixo dos pés, no sol a tremer no mar, ao fundo, por entre as árvores…

Quermesse. Não, não é uma tentativa desesperada de encontrar uma palavra começada por esta letra tramada. Há festas de Verão, há o animador de serviço sentado num órgão electrónico num triste palco, há miúdos a jogar à apanhada, há frangos assados e conversas a subir ao ritmo do vinho — e há as quermesses. O meu filho mais velho descobriu-as há uns anos, nas festas da Ervideira, a terra do avô materno, onde gastou umas três moedas, ficando com a felicidade estampada no rosto por ter ganhado um copo rachado, um tupperware vazio e um belo pano para decorar mesinhas de sala. Depois foi jogar à apanhada. A felicidade das crianças é coisa tão simples como a água — nós é que complicamos.

Recordações. Os jogos que vimos juntos, as estradas por entre árvores, as longas conversas à beira-mar, os amores, as festas as viagens de finalistas, as leituras, as viagens, aquele olhar que só tu e eu nos lembramos… Todas estas palavras de A a Z são também recordações pintadas com as cores todas que só o Verão sabe dar às coisas.

Sol. Ah, o Deus das Letras foi muito injusto ao distribuir as palavras da nossa língua. Coço a cabeça durante minutos a tentar encontrar a palavra para o «U» (vem já aí) e, aqui no «S» tenho tudo: tenho «sol», tenho «sul», tenho «sexo», tenho «suor» (da palavra anterior ou apenas de jogar futebol na praia), tenho até «saliva» — ou então «sentidos», os tais cinco sentidos tão acordados durante estes meses. Mas o Sol, o Sol… A estrela ali em cima a oferecer-nos calor, luz, vida, os perigos da radiação...

Terraço. Ainda pensei em «topless», ainda pensei em «turismo», mas fico-me pelo terraço, numa casa de férias com vista para o mar, o sol a iluminar-nos as delícias das conversas e da boa comida (acompanhada duma boa salada de pimentos e tomate, claro), as sardinhas na grelha, a cerveja na mão — ou então, à noite, os grilos escondidos não se sabe onde e os reflexos duma qualquer piscina nas paredes brancas. Enquanto isso, lá em cima, as estrelas…

Universo. Não é dos prazeres mais óbvios, mas proponho que experimente a estranha excitação de ler bons livros de ciência durante o Verão. Há qualquer coisa de muito bom em compreender um pouco melhor o universo enquanto o corpo se sujeita ao calor do sol ou os nossos olhos recebem a luz de estrelas — luz que chega às nossas retinas depois de milhões de anos a percorrer a imensidão do espaço… Deitados na relva, no calor da noite, sabe bem pensar nisto, o livro ao lado, os olhos bem abertos e a imaginação a ir pelo espaço fora.

Vento. O Verão português — pelo menos para quem cresceu ali no Oeste — também é vento. E, pelos vistos, agora também é frio e chuva. O nosso Verão tem de tudo. Vento, chuva, trovoada — mas o que mais tem continua a ser o sol. (Pronto, esta letra serviu apenas para desenjoar da letra anterior com uma fresca banalidade.)

  1. Vá, experimente, encontre uma palavra começada por X que fique bem aqui. Por mim, que já estou cansado (está calor), fico-me pelo próprio X, que vale pelo tesouro dos livros de Verão que líamos na infância (e que ainda relemos, de vez em quando, sem dizer a ninguém). Os livros, os livros… Lá continuam pela nossa vida — para mim, uma definição de boas férias é «dias em que posso ler sem parar». Claro que tenho de jogar à bola com o meu filho, carregar com as malas, conduzir — mas posso ler mais do que o habitual. Só isso vale a pena e até me reconcilia com os óculos a escorregar pelo suor do Verão.

Zonzo. Fico zonzo, claro que fico. O calor, o corpo cansado de nadar, o calor, os quilómetros a andar na praia, o calor (já tinha dito?), os chinelos a escorregar nos passadiços, as birras (e, claro, o calor). Mas, quando chega Setembro, estamos já todos com saudade da estação das nossas aventuras, das nossas memórias, dessas viagens em que criamos as boas memórias do futuro — do nosso e dos nossos filhos. O Verão é mesmo um dos nossos tesouros e está agora a começar.

Boas Férias!

(Crónica baseada em texto de 2018.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas PalavrasO seu livro mais recente é Português de A a Z.