Na semana passada, rebentou uma polémica (repare-se que, desde que os terroristas abandonaram o modus operandi do cinto de explosivos, as polémicas têm vindo a assumir a dominância na indústria dos rebentamentos) em volta de um conjunto de dois blocos de atividades para crianças, um para rapazes e outro para raparigas, editados pela Porto Editora. O leitor sabe o que se passou, certo? Tornou-se viral uma imagem em que a resolução de labirinto era mais fácil no livro dedicado ao sexo feminino, para além de que os livros distinguiam os géneros de forma estereotipada, através da cor e das atividades praticadas. Apesar do contraditório — os ilustradores eram diferentes em cada livro e existiam também exercícios mais fáceis para os rapazes —, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género recomendou a retirada dos livros e a Porto Editora obedeceu.
Em primeiro lugar, cabe-me fazer uma declaração de interesses: sou gajo e sou péssimo com labirintos. Vivo na zona histórica de Lisboa e não raro entro em contramão. Pois, quem é que me manda andar de carro para todo o lado? Exato, os estereótipos de género que ditam que um homem que ande de transportes públicos aprecia garantidamente ser sodomizado. Adiante.
É inaceitável que uma gritaria nas redes socias precipite um precedente destes por parte do Estado. Rapidamente, qualquer conteúdo que tenha uma interpretação estereotipada poderá ser alvo de boicote. Inúmeros filmes infantis, desenhos animados, banda desenhada potencialmente censuráveis, em virtude de uma possível sinfonia de berros na rede. “Porque é que tem de ser a Cruella que é má! As mulheres não tratam assim os cães! E o Doraemon? Quem é que que diz que é ‘o’ Doraemon? Estão a assumir o género de um boneco sem genitais! E a Cinderela? Proíba-se a Cinderela! Respeitem as mulheres patudas!”.
O livro exemplifica tarefas antiquadas associadas a cada género e, por isso, parece preguiçoso. Mas o que assusta é a velocidade a que o Estado sucumbe a uma histeria desinformada nas redes sociais para subtilmente censurar uma publicação livre, que nem sequer está inserida num programa escolar. Subtilmente, sim, porque politicamente correto chegou à linguagem do censor. Diz o comunicado da CIG, “Face ao exposto, a CIG, por orientação do Ministro Adjunto, recomendou à Porto Editora – tendo em conta o seu relevante papel educativo – que retire estas duas publicações dos pontos de venda, disponibilizando-se para colaborar na revisão dos conteúdos das mesmas, no sentido de eliminar as mensagens que possam ser promotoras de uma diferenciação e desvalorização do papel das raparigas no espaço público e dos rapazes no espaço privado.”
Não se proíbe, recomenda-se a retirada. É como no meu colégio: os alunos não eram expulsos, eram convidados a sair. Sobretudo rapazes que eram apanhados a fumar ganzas em locais recônditos, encontrados através da sua superior desenvoltura a decifrar labirintos. E ainda se oferece colaboração para “eliminar mensagens”. Eliminar, ein? “Nós ajudamos-vos aí a eliminar o conteúdo, caríssima editora livre. Mas só se quiserem, ninguém vos obriga aí a eliminar. Eliminem por vossa conta, não se sintam pressionados a eliminar. Se quiserem a nossa ajudinha para eliminar, contem connosco para a eliminação. Eliminamos em conjunto e fazemos aí um livro giro, em cor-de-rosa para os meninos, em azul para a Outra Senhora!”
O argumento dos novos censores é, ironicamente, semelhante ao dos racistas: “O politicamente correto? Em Portugal? Não existe, nunca existiu! Isso é no estrangeiro. Nos Estados Unidos, sim, têm tido umas situações com isso. Em Portugal, não. Politicamente quê? Desconheço”.
Hoje, a constante vigilância de costumes das redes sociais é o videoárbitro do moralismo. A insaciável ânsia de cuspir indignação no teclado resulta na possibilidade de cada um de nós se tornar num parcial juiz dos bons costumes, com acesso a inúmeras repetições, mas quase sempre do mesmo ângulo. Ao contrário do que podíamos esperar, as novas tecnologias acabaram por trazer mais, ainda mais, emoção ao politicamente correto.
Recomendações:
A leitura de Ricardo Araújo Pereira a esta polémica, no Governo Sombra da TVI24.
O Festival Iminente, que decorrerá nos dias 15, 16 e 17 de setembro em Oeiras.
As compras de regresso às aulas, nas quais sugiro que adquiram somente cadernos unissexo, para que os vossos filhos não levem porrada dos filhos da Rita Ferro Rodrigues.
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