Ainda há pouco tempo, assisti a uma discussão tremenda, daquelas que aquecem os ânimos sem dar nenhum resultado, sobre a expressão «os dois pais». Num dos grupos de Facebook dedicados à língua, alguém se pôs a reclamar porque ouviu um jornalista a dizer que tinha conversado «com os dois pais deste jovem». O espectador estava tão indignado com a expressão que até pedia para que lhe dissessem se teria ouvido bem. Inacreditável! Alguém se atreveu a dizer em directo «os dois pais»!

Já sabemos que a nossa capacidade para imaginar regras fictícias do português é infinita — mas esta espantou-me. Onde estaria o erro?

Pelos comentários, percebi: se estamos a falar dos dois pais do jovem, basta dizer «os pais do jovem». Se dissermos «os dois pais», estamos a insinuar que são dois pais do género masculino. Logo, é erro.

Apareceram logo várias vozes a concordar. Claro que é erro! E se alguém dizia que não, atalhavam: «Foi assim que aprendi na escola!»

Tentei imaginar uma professora primária a dizer aos meninos: «Se falarem dos pais, nunca digam “os dois pais”!» — Não consegui.

Ponho-me nos pés de quem ouviu a frase e encontrou ali um erro… É verdade que a palavra «dois» podia ser eliminada — afinal, os pais serão só dois… Posso dizer apenas «com os pais deste jovem». Se isto fosse um texto escrito, talvez tirar a palavra ajudasse a afinar o estilo do texto.

Mas é disso que se trata: afinações estilísticas…

Agora, um erro?

Quem ali comentava parecia ter a certeza. Houve quem puxasse da frase «Agora já se pode dizer tudo!». Apetecia-me responder: nunca isto foi uma regra de português e, não, agora não podemos inventar regras de português só porque sim…

Tento formular a suposta regra: «Apenas devemos usar um numeral nos casos em que o número de elementos referidos pelo nome não puder ser determinado de outra maneira.» Será isto? Esta regra não está em nenhuma gramática. É pura invenção. Se fosse real, teríamos de eliminar expressões como «os meus quatro avós», «os cinco dedos da mão» — entre muitas outras!

Aliás, há frases em que a indicação do número de pais parece inevitável:

  • «A Carolina só trouxe a mãe, mas o Simão veio com os dois pais!»
  • «Consegui falar com os dois pais do Martim, apesar de viverem longe um do outro.»
  • «Já só tenho um avô vivo, mas ainda tenho os dois pais.»

Se eu disser «Já só tenho um avô vivo, mas ainda tenho os pais», o que digo é perceptível, mas ligeiramente confuso. O numeral «dois» permite-me apontar claramente para o que quero dizer.

No caso que começou toda aquela confusão, o jornalista queria sublinhar que falar com os dois e não apenas com um dos progenitores do tal jovem. E mesmo que não fosse o caso, a língua, na oralidade, está cheia de informação redundante. É assim com todas as línguas e é um mecanismo natural que os seres humanos desenvolveram, inconscientemente, para permitir uma comunicação com menos falhas.

Enfim, as regras inventadas são mais que as mães — e que os pais. Todos temos dúvidas e todos acreditamos em mitos e já sabemos como as famosas redes sociais nos expõem a todo o tipo de ideias certas e erradas. Não quero dar demasiada importância a um caso como este, embora não deixe de ficar preocupado com a facilidade com que tantas pessoas genuinamente interessadas na língua acreditam num mito destes.

Se não servir para mais nada, o mito servirá para nos fazer reparar num ponto curioso da nossa gramática. De facto, o plural de «pai» é peculiar: a palavra, no singular, refere-se quase sempre a um homem (e o «quase» está ali por precaução). No plural, pode indicar os dois pais (cá está…) de uma pessoa, um grupo de pais (de uma turma, por exemplo) ou apenas os pais do sexo masculino («as mães para um lado e os pais para o outro»). Posso ainda dizer coisas como «Cada aluno só pode trazer um dos pais!» e, ainda assim, estar a referir-me a algumas mães. O sentido será claro em cada frase — e se não o for, teremos de explicar de outra forma (escrever implica encontrar possíveis ambiguidades, muito mais graves do que qualquer redundância).

Até o plural dos pais dos pais é muito curioso… Se eu disser «os meus avós» estou a referir-me aos avós de ambos os sexos. Se eu disser «os meus avôs» estou a referir-me apenas aos avós do sexo masculino. No entanto, no que toca ao género gramatical, «[os] avós» e «[os] avôs» são duas palavras do género masculino; já «[as] avós» é uma palavra do género feminino. Confuso? Talvez seja para quem está a aprender português na idade adulta. Um falante nativo raramente erra nisto…

É ou não é verdade que, para lá dos mitos, os plurais de «pai» e «avô» são um delicioso cantinho da gramática da nossa língua.


Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos