A alegria de não ver o que todos vêem
Não é novidade: sempre que há um entusiasmo colectivo com um filme, série ou livro, o Facebook enche-se de declarações bombásticas: não vi, não li, não sei o que seja! De forma mais ou menos explícita, deixa-se claro que se considera o entusiasmo dos outros pueril, exagerado, ridículo.
Em geral, os posts seguem um padrão. Alguém diz que não viu a série X. Uma outra pessoa diz que nem sequer sabe o que é X. Outra vem dizer que não perdem grande coisa (assumindo, portanto, que já caiu na tentação de espreitar X). Todos se riem, batem palmadas virtuais nas costas uns dos outros e voltam às suas vidas, já mais descansados: são, certamente, mais razoáveis do que a maioria que vê X. O mundo, aliás, está louco! Há tanta gente que gosta de ver X!
Nada disto faz mal seja a quem for. Quem gosta de X continua a ver X, encolhendo os ombros perante as declarações bombásticas de quem não vê X.
Esta semana, este padrão repetiu-se com o primeiro episódio da última temporada da Guerra dos Tronos.
Nem todos vêem o que todos vêem
Há um facto curioso por trás disto: mesmo os programas mais vistos são sempre vistos por uma minoria de pessoas. Se olharmos para as tabelas de audiência, os programas mais vistos são quase sempre jogos da Selecção Nacional, que juntam adeptos do desporto preferido cá da terra sem que haja divisão de clubes — e mesmo estes não chegam perto dos 5 milhões de espectadores…
Sim, é verdade: há muita gente a assistir aos jogos em locais públicos — mas isso só acontece com o futebol. Ou seja: se ignorarmos o desporto, nunca há uma maioria de pessoas a assistir seja ao que for. Então, se falarmos de uma série, por mais sucesso que tenha, será sempre vista por uma minoria muito reduzida... As séries de maior sucesso são sempre fenómenos minoritários. Parece contraditório? É fazer as contas!
Claro que aqueles que vêem a tal série (ou o filme; ou o livro) são uma minoria ruidosa: são gente entusiasmada. Não é de agora. Quantos de nós não nos lembramos de concursos que todos viam, de telenovelas que paravam o país, de filmes de que todos falávamos?
Aliás, vivemos num tempo em que há menos fenómenos destes, há menos manhãs em que chegamos ao trabalho a falar do programa da noite anterior. O entretenimento está muito mais fragmentado. Mas, confesso, se me lembro desde sempre de gente entusiasmada com filmes, séries, telenovelas, concursos, concertos e tudo o mais, parece-me ser mais recente esta necessidade colectiva de declarar não ter visto isto ou aquilo.
O prazer de não gostar
Talvez seja apenas falha de memória da minha parte. Talvez este orgulho em não participar naquilo em que todos participam (por “todos” entenda-se a tal minoria que vê determinado programa) seja muito antigo.
O certo é que, na passada segunda-feira, o Facebook estava cheio de orgulhosos abstémios. Os embriagados com a série pouco apareciam. Estavam, certamente, ocupados a ver o dito episódio — ou de ressaca…
Talvez seja um prazer ter a sensação de pertencer a uma minoria que não se deixa levar por moda du jour (uma minoria que, afinal, é sempre uma maioria). Talvez haja também a necessidade de ficar descansado: há tantos entusiasmos por aí, tanta série, filme, jogo, livro — que temos de fazer escolhas. Não queremos pensar que estamos a perder algo de importante. Daí a tal necessidade das pancadinhas virtuais nas costas, como que a dizer: não te preocupes, não és o único! Não viste? Eu também não…
O mundo é assim. Todos temos os nossos entusiasmos e indiferenças e o direito inalienável de declarar quais são. Mas também não custa admitir: se muito do que é visto por milhões não presta, também há coisas que “todos” vêem que são muito boas. O importante é encontrar uma ou outra coisa que nos deixe de boa aberta, entusiasmados, sem ligar ao que nos rodeia, a viajar por algumas horas por um qualquer território da imaginação, numa história que vemos, ouvimos ou lemos. É uma necessidade básica dos seres humanos.
Marco Neves | Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.
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