Que outra coisa mais nos poderia oferecer a barulhenta contestação das consoantes mudas? É que o Acordo Ortográfico (AO90) permite esta insurreição digna dum graffiti, mesmo até a preencher o mais aborrecido dos formulários: basta usarmos aquele arcaísmo proscrito que é o duma língua portuguesa mais lógica, cheia de coisas mudas e causas lusas.

Quem, senão este acordo, poderia oferecer justa causa à nossa impaciência com os mais novos? Há quanto tempo é que não temos razão quando nos queixamos dos miúdos, e do que eles andam a aprender na escola? O AO90 é uma passadeira vermelha para tanta decepção (curiosamente, a palavra “decepção” acabou de receber uma passadeira vermelha no computador onde escrevo; ganhou o sublinhado encarnado dum erro ortográfico). As criancinhas até podem não andar a ser mal ensinadas, mas adquirem a escrita duma língua cada vez mais convencionada que aprendida. Consoantes a convulsionar vogais eram o único bullying aceitável.

Que outra coisa mais poderia favorecer um saudosismo virtuoso num país de saudosistas indignos? Se é para suspirar por outros tempos, deixemos esse síndrome nostálgico português que faz lembrar os israelitas do Livro de Números – com saudades do cativeiro. Não é preciso ter a saudade ignóbil do antes de 1974 quando há justíssimas saudades do pré 1990 (ano em que se redigiu o Acordo Ortográfico) ou do pré 2012 (ano em que o acordo ganhou carácter de obrigatoriedade). Devia ser assim: refutar o caráter de obrigatoriedade, resgatar a obrigatoriedade de carácter. Antigamente é que era! 

Que outra coisa mais nos tornaria objectores de consciência, mesmo que não sejamos pacifistas, nem antimilitaristas, nem testemunhas de Jeová, nem nos faça muita impressão a visão de sangue a jorrar? Ficámos objectores em consciência dos abjetos “objetores”. O AO90 consegue isto e o contrário: leva-nos a declinar as suas batalhas e, por outro lado, a pegar nas armas, teclas e canetas, que o combatam. Quem mais nos poria a declarar jihads por causa da escrita? Quem mais nos poria na valorosa resistência contra um colaboracionismo linguístico? Só o Acordo. É das coisas mais excitantes que aconteceram à Língua Portuguesa, eu disse-vos.

Sou um apaixonado por este idioma que falo, por isso não escondo a recente excitação ao ver-me também apaixonado pela minha ortografia. Não é um caso de narcisismo linguístico; eu também gosto deste português que tão retorcidamente me descreve os defeitos e assinala os erros. Gosto dos castigos que a língua me dá, e do embaraço quando me corrigem o seu mau uso. Gosto do “Português de Portugal” porque ele é o irmão mais velho, diligente e coerente, de outros “Portugueses”- uns mais açucarados, outros com paródia na prosódia, outros hirtos na ortoépia. Acima de tudo gosto do meu Português porque ele pertence à Língua Portuguesa, a melhor de todas, a maior e mais diversa que nós todos.

O meu primeiro contacto com o AO90 foi algo desapaixonado. Julguei que iria rejeitá-lo de forma natural e preguiçosa, do género “Se eu sou um gajo que mentalmente ainda converte os euros em escudos, vou lá agora interiorizar estas novas regras ortográficas...”. Cresci a ler revistas de banda-desenhada vindas do Brasil (as histórias em quadrinhos, ou gibis), por isso acreditei numa convivência pacífica e desapercebida com este Português desossado. Mas não: cada artigo de jornal ao abrigo do novo acordo, cada legenda de filme, cada cartaz com que me deparei resultaram em inúmeros morderes de lábio (que a Língua já estava a ser trincada). Só aí me bateu a irreversibilidade da coisa. Só aí percebi a gravidade dos manuais escolares - esses biberões da língua escrita - virem com leite viciado e viciante. Não haverá desmame que nos valha.

São demasiados os princípios, preceitos e aplicações do AO90 que me parecem desajustados. Vou escolher apenas dois que vierem à cabeça para justificar a  minha oposição:

O primeiro prende-se com a regra da fonética que o acordo quer acompanhar, simplificando na escrita aquilo que já se simplificou na oralidade. Esta justificação peca logo por não contemplar, por exemplo, o verbo “tar”, muito mais corrente na fala que o correcto “estar”. E, por outro lado, porque há de ter a fonética vigente mais peso sobre a ortografia do que a própria ortografia vigente? É que se queremos um acordo ortográfico que está mesmo a ser inequivocamente posto em prática, só se for aquele que escreve “gosta-mos” e fizes-te”.

Outra objecção, menos técnica e mais de princípio, está ligada à própria motivação do AO90. O pânico de ver uma Língua Portuguesa una a desmembrar-se em várias formas de falar e escrever, formas essas que se tornam cada vez mais distintas e imperceptíveis entre si, é legítimo. Ninguém deseja que a lusofonia se esfume por entre tais diferenças. Agora, se há coisa que este acordo tosco tem demonstrado, é que não se vêem quaisquer aproximações relevantes entre Portugal e Brasil por intermédio da nova ortografia; vê-se, isso sim, uma fragmentação identitária no seio da Língua Portuguesa europeia. E como juntar trapinhos quando uma facção está enfraquecida e a outra é uma solteirona incorrigível a marimbar-se para casamentos?

Se hoje em dia nós entendemos perfeitamente os brasileiros e eles não nos entendem com tanta facilidade, será isso uma questão ortográfica? Mil milhões de hífens desaparecidos não valem uma só Sónia Braga. Será, então, que a chave do entendimento não reside na aproximação cultural, consciente e enriquecida pelas diferenças, mas perfeitamente bilíngue duma língua só? O investimento deveria estar num Português que se impõe como diversidade, não que se simplifica numa rendição aborrecida - porque é que queremos um acordo ortográfico de capitulação, em vez duma cultura de catapultação? 

O AO90 é imparável, mas de tão obtuso parece que lá vamos conseguir revê-lo e afiná-lo um bocadinho. É disso que se anda a falar. Acho que estou contra esta revisão, porque se for bem feita vai reduzir-me o espaço para a rebeldia. Vai deixar de ser tão essencial a resistência, ou a tarefa de passar aos miúdos esse velho dialecto dum português mais bem escrito, quase como quem ensina a fazer uma viola campaniça. O AO90 é irrevogável, mas não acreditem se vos disserem que ninguém o pára. Quando muito, ninguém o para.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Se há palavras que nos beijam (como diria o O’Neill), este deve ser um dos sítios mais afectuosos da internet. Viva a Língua Portuguesa, e viva o que o Brasil fez e faz por ela. Contra os canhões, marchar e Machados.

Por outro lado, se do Brasil nos chegam beijos, às vezes também nestas coisas linguísticas desejamos que lhes cheguem pares de estalos.