Por todo o mundo o português é gabado pelo desenrascanço que nos é tão característico. Somos uma espécie de McGyver que nunca terminou o curso de engenharia até porque depois da quarta classe decidiu ir para a Escola da Vida e nem aí fez o ensino obrigatório. Temos visto essa nossa capacidade de adaptação a novos ambientes durante a pandemia. Ninguém me tira da cabeça que foi o tuga que inventou o nariz fora da máscara, por exemplo. Mas neste novo confinamento ainda vemos mais essa capacidade de adaptação. Por exemplo, há quem tivesse os cães fechados em apartamentos que só iam passear uma vez por dia, e só durante cinco minutos, e agora o cão dá tantos passeios que pensa que é um cavalo ou um cão-polícia de giro.

Algumas pessoas compraram coleiras de cão para andarem na rua a passear e, sendo abordados pelas autoridades, dizem que andam à procura do cão que fugiu. Isto nem é piada, aconteceu mesmo há uns dias e, sendo que foi em Cascais, aposto que o cão imaginário era um buldogue francês ou um labrador. Há quem peça cães emprestados a amigos e há quem, pasmem-se, alugue cães só para ter desculpa para andar a passear nesta altura de confinamento. Se a pandemia dura muito isto é capaz de sair caro, por isso sugiro a essas pessoas que espetem dois garfos em brasa nos olhos porque os cegos com cão-guia estão sempre em regime de excepção para quebrar o confinamento e passear na rua. Sortudos.

Se as escolas não fecharem ainda vamos ver pessoas a iniciar processos de adopção só para terem desculpa de sair de casa para ir levar e buscar os filhos aos estabelecimentos de ensino. Vai ser a primeira vez nos orfanatos que as crianças entre os seis e os dez anos vão ter mais procura do que os bebés. No outro espectro, aposto que há quem fosse visitar os pais ou avós ao lar apenas uma vez por semana ou por mês, se por acaso não tivessem mais nada marcado, e que agora vão todos os dias só para terem desculpa caso sejam abordados pela polícia. Aliás, haverá quem prefira embalsamar os velhos e mantê-los num lar a pagar mensalidade do que participar a morte e ficar sem desculpa para sair de casa. Quem já não tiver avós nem ninguém para prestar auxílio, convém inscrever-se já como voluntário para ser cuidador informal em casa de um velhote, mas apressem-se a escolher rapidamente porque os velhotes vão ser tipo o papel higiénico e não tarda as prateleiras estão vazias.

Como vemos, o tuga é capaz de tudo para quebrar o confinamento e meter os corninhos ao sol: pessoas que pedem cães emprestados; pessoas que inventam familiares a quem têm de prestar auxílio e, até, gordos que dizem que estão a fazer desporto. Enfim, gente capaz de tudo que já nem sei se somos desenrascados ou só chico-espertos.

Na primeira vaga e consequente confinamento, o português foi apelidado de milagre tanto por Marcelo como lá fora, onde outros países não percebiam como o nosso estava a passar quase incólume a uma pandemia mortal. Seria da BCG, do azeite e do vinho ou de Nossa Senhora de Fátima que nos protegia? Agora, infelizmente, estamos a ver que esse milagre era como todos os outros: uma fraude e apenas uma coincidência. Estávamos todos descansados devido a esse milagre que, tal como o remate do Éder, nos levou a patamares onde nunca estivemos habituados a estar. Caso as coisas piorassem, estávamos confiantes de que a capacidade de improviso do tuga resolvesse o problema. O próprio António Costa, com meses de preparação, relaxou e achou que o tuga, de dois sacos de plástico e duas palhinhas, faria ventiladores e que com a falta de profissionais de saúde, os talhantes com um mini workshop via zoom aprendessem a entubar quem precisasse de cuidados intensivos. E agora, não foi preciso o golo do Éder para nos colocar no primeiro lugar do pódio, não do Europeu, mas do Mundial de maior número de casos diário por milhão de habitantes. Venha de lá a extrema unção que, afinal, o milagre era placebo.

Sugestões:

Para ver: Unsolved, na Netflix

Para ouvir: Banana-Papaia, de Joana Gama e Rita Camarneiro