A nossa unidade monetária era, até 2002, o escudo — ou, em linguagem de rua, o pau. Um café custava uns 50 paus (ou algo do género), um livro ainda eram uns 1500 paus...  Depois de 2002, o escudo desapareceu e o mesmo pensei que tivesse acontecido ao pobre pau, o escudo reguila. 

Foi com muita surpresa que, há uns tempos, ouvi um amigo mais novo referir-se a uma quantia em euros usando a velhinha unidade pau. Havia, dizia-me ele, um computador muito bom à venda numa certa loja por 400 paus. Estranhei não só o termo, mas também o valor: um computador por 400 escudos? Não: o pau valorizou bastante — 1 novo pau vale 200 antigos paus (e mais umas migalhas). Depois da surpresa, acabei por encontrar muitas outras pessoas que usam o convertido pau.

Estas sobrevivências não são exclusivas da transição do escudo para o euro. Quantas vezes não ouvi eu a palavra merréis — a versão despachada de mil-réis — da boca dos meus avós, como equivalente de escudo? O real (com o plural réis) ainda aparecia na boca dos portugueses no início do século XXI! E, no entanto, a moeda tinha sido substituída pelo escudo em 1911...

A conversão entre réis e escudos era fácil: um escudo eram mil réis. Assim, a palavra mil-réis manteve-se na boca dos portugueses. Os réis também sobreviveram no nome que dávamos à moeda de 2$50. Correspondia a 2$500 réis — e daí o nome moeda de dois e quinhentos. (Um milhar de réis escrevia-se 1$000; com o escudo, o cifrão passou a ser o símbolo decimal, mas não saiu do mesmo lugar, se pensarmos no valor da moeda.)

O próprio conto era ainda uma sobrevivência do real: um conto de réis era um milhão de réis. Com a mudança, um conto passou a valer 1000 escudos. Depois de 2002, o conto manteve-se nas contas mentais que fizemos durante muitos e bons anos — há aliás quem me garanta que ainda pensa em contos. De certa maneira, o real, a pairar como fantasma atrás do conto, sobreviveu mais tempo do que o escudo.

As palavras, por vezes, são mais sólidas do que pensamos. Quando começámos a usar o correio electrónico, mantivemos velhas palavras como endereço, remetente, destinatário... Hoje, há canais no YouTube, como há canais na televisão. Temos murais no Facebook. Aliás, não ficaria nada mal publicarmos por lá postais, que têm a dupla vantagem de serem bem portugueses e não se afastarem muito dos mais habituais posts ingleses — mas, enfim, ninguém consegue controlar as palavras que ficam e as que desaparecem (podemos tentar, claro está). Até uma palavra tão localizada no tempo como disquete sobrevive em frases como «clique no símbolo da disquete para gravar o ficheiro»... 

Para sobreviver, uma palavra adapta-se. Muda de som, muda de significado, às vezes até muda de língua. São resistentes, as palavras. São também maleáveis: através das metáforas, conseguimos usar uma palavra simples para designar realidades mais complexas. Esta é uma característica de todas as línguas. Há metáforas que são quase universais: quando representamos um valor que aumenta, quase sempre representamo-lo como estando a subir. É tão natural que nem percebemos estar perante uma metáfora — e, no entanto, quando a temperatura aumenta, nada sobe (talvez o mercúrio nos antigos termómetros). O certo é que os falantes de português e de muitas outras línguas compreendem perfeitamente quando se diz que a temperatura está a subir — é o mecanismo mental que permite ao nosso cérebro ver o aumento da temperatura. 

Também acontece algo parecido quando falamos do tempo a passar: como não o vemos, usamos termos relacionados com o espaço. Usamos as mesmas palavras: vou de Lisboa ao Porto e trabalho de segunda a sexta; ele está perto de casa e telefona perto das duas; estamos longe desses tempos; vamos entrar no novo ano... O tempo não anda para trás, todos sabemos. Na verdade, também não anda para a frente. Não anda, ponto final — e, no entanto, para o nosso cérebro, parece que sim. São truques que a mente usa para compreender o mundo, que são revelados quando olhamos com atenção para a língua. 

A língua é um depósito de sedimentos em que encontramos invenções recentes e materiais antigos — sejam as metáforas que usamos para falar do que não se vê ou os nomes que damos às moedas, mesmo quando elas mudam.

Sugestão de leitura (e de tradução): A importância da metáfora para o funcionamento das línguas, muito para lá do uso literário, há muito foi reconhecida pelos linguistas. Um livro com um excelente capítulo sobre o assunto é The Unfolding of Language, de Guy Deutscher. É pena não estar traduzido em português.

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. É autor da Gramática para Todos