Uma grande parte das línguas do mundo não usa alfabetos.
O chinês, por exemplo, usa um sistema de escrita logográfica, em que cada símbolo representa uma palavra ou morfema — mas também há símbolos, ou partes de símbolos, que representam informação fonética. (Uso «chinês» e não «mandarim» por estar a falar da escrita.)
Já o japonês usa um sistema de escrita silábica, em que cada símbolo representa uma sílaba. Aliás, os japoneses usam dois silabários e ainda muitos caracteres de origem chinesa, tudo na complexa mistura que se encontra em cada texto.
O árabe usa um sistema consonântico (ou abjad), em que cada símbolo representa uma consoante e as vogais são representadas por sinais diacríticos — à semelhança dos nossos acentos — ou ignoradas. (Para sermos precisos, o sistema árabe representa algumas vogais.) A escrita fenícia, que deu origem ao nosso alfabeto, era um abjad.
Existem ainda sistemas denominados abugidas, em que cada consoante é um símbolo principal, que é depois alterado para representar a vogal seguinte. Muitos dos sistemas de escrita indianos são abugidas. Tal como nos abjads, estes sistemas representam em primeiro lugar as consoantes; as vogais são complementos.
Embora usemos, no dia-a-dia, a palavra «alfabeto» para falarmos de muitos destes sistemas (é habitual dizermos «alfabeto árabe»), de forma estrita, os alfabetos são apenas aqueles sistemas de escrita que representam em pé de igualdade as vogais e as consoantes. São sistemas que tentam representar os sons.
Tecnicamente, os alfabetos tentam representar os fonemas e não os sons, ou seja, as unidades abstractas que distinguem significados e que podem acabar por ser ditas de várias maneiras diferentes (só como exemplo, o fonema que termina a palavra «pás» pode ser dito de, pelo menos, três maneiras diferentes, dependendo do som que se segue). Disse «tentam representar» — o verbo «tentar» é significativo: como sabemos, a ortografia da grande maioria das línguas é tudo menos simples.
Os sistemas alfabéticos no sentido estrito são, na verdade, apenas seis. Aqui ficam:
1. Alfabeto grego
Começamos pelo grego, com letras tão nossas conhecidas. Não só sabemos alguns dos nomes («alfa» e «ómega», para começar e acabar), como até identificamos alguns dos sons. Neste caso, a matemática dá-nos uma ajuda. Afinal, o nome do nosso país em grego começa pela letra pi — embora maiúscula: Πορτογαλία.
Muitas das nossas palavras vêm do grego — mas o aspecto é bem outro. Basta pensar na «geografia», que em grego é praticamente igual, não fosse ser tão diferente: γεωγραφία.
2. Alfabeto cirílico
Um alfabeto que nasceu a partir do grego e é hoje usado em muitas línguas eslavas (e não só). Há uma letra magnífica neste alfabeto: Щ. Magnífica porque representa, em ucraniano, os sons «chtch». Uma só letra para tanto «ch»…
Curiosamente, há uma língua que usava este alfabeto e agora está a começar a usar o nosso alfabeto latino. Falo do cazaquistanês (ou cazaque). Esta mudança não se faz sem alguma resistência, principalmente porque a versão original da ortografia latina da língua enchia a escrita de apóstrofos, o que era visto por muitos como pouco prático e muito feio.
Pois, no dia 19 de Fevereiro de 2018, o governo do Cazaquistão aboliu os apóstrofos e afinou a ortografia. A transição continua com o objectivo de ter uma língua escrita em alfabeto latino.
Uma das razões para esta mudança é, curiosamente, a vontade de que a língua se torne mais distinta do russo, que também é oficial no país. Ou seja, este povo tem agora dois alfabetos em vez de um em nome da identidade da sua língua própria. A escrita é muito mais do que um código: é uma bandeira — e convém ser uma bandeira bonita, como dizem os cazaques com horror ao excesso de apóstrofos.
Já agora, lembro outra língua que também passou a usar o alfabeto latino: o turco. Até ao início do século XX, usava a escrita árabe. Mas já voltamos ao turco. Antes disso, olhemos para um alfabeto ali ao lado…
3. Alfabeto arménio
Chegamos agora a um alfabeto um pouco mais distante e que poucas vezes nos passa pela frente: o alfabeto arménio. O aspecto é este:
É um alfabeto antigo, criado no século V e que tem hoje em dia 39 letras, o que, nos computadores, obriga a usar teclas que, pelos nossos lados, levam sinais de pontuação e acentos.
Continuemos a viagem sem sair da mesma região do mundo…
4. Alfabeto georgiano
Pois, se o arménio é pouco conhecido, não deixa de ter o seu ar de escrita normal, a lembrar, de vez em quando, as nossas letras. Já o georgiano…
O georgiano é outra coisa! Parece um alfabeto para brincar, inventado por crianças, cheio de bolinhas, letras redondinhas e corações:
O mais curioso? Não se sabe muito bem qual é a origem deste alfabeto… É, no entanto, um alfabeto: tem as consoantes e tem as vogais.
5. Alfabeto latino
O nosso estimadíssimo alfabeto, usado um pouco por todo o mundo, desde o português ao… vietnamita!
O alfabeto é só um, mas a maneira como cada língua usa as letras varia muito pelo mundo fora. O inglês, como sabemos, usa apenas as letras, sem mais sinais — embora, na verdade, isto seja muito enganador: é uma língua que tende a preservar os sinais que vêm com as palavras que engole, como no caso de façade.
Aliás, esta aparente simplicidade do alfabeto à inglesa esconde uma ortografia muitíssimo complexa, cheia de letras com várias leituras (ou nenhuma, como o «k» e o «gh» de «knight»).
Temos ainda o turco, que decidiu dar à pinta do «i» o estatuto de acento, o que significa que há um «i» sem pinta («ı» e «I») e um «i» com pinta («i» e «İ»). Repare o leitor que o nosso «i» tem pinta na versão minúscula e não tem pinta na versão maiúscula. Já os turcos gostam de pôr os pontos nos is…
Mas a língua que usa o alfabeto latino de forma mais curiosa é o vietnamita. Não se limita a ter acentos, mas tem acentos em cima de acentos — o que parece ser essencial para representar os vários tons de cada sílaba, tons esses necessários para distinguir significados. Aqui fica um exemplo (o início do artigo wikipédico sobre o vietnamita em vietnamita):
Sim, aquele «e» no título tem um acento circunflexo e um acento agudo ao mesmo tempo.
Este sistema tem por base o trabalho de missionários portugueses que andaram por aquelas paragens.
6. Alfabeto coreano
A escrita coreana tem este aspecto:
Alfabeto? Não será isto um sistema logográfico como o chinês ou um silabário como o japonês? Na verdade, não. O coreano é um alfabeto, pois representa as consoantes e as vogais em pé de igualdade.
No entanto, as consoantes e as vogais são representadas não de forma linear, mas antes em grupos silábicos. Assim, cada símbolo é uma sílaba, mas pode ser dividido nos vários sons que compõem essa sílaba. Aqui está a divisão da palavra «Hangeul», que significa «coreano»:
Já agora, para terminar, convém dizer algo que nos parece pouco natural, mas é verdade: uma língua não depende do alfabeto em que está escrita. O português podia ser escrito usando o alfabeto grego, desde que encontrássemos regras de ortografia para esse uso. Por exemplo, a frase «Como te chamas?» poderia ser escrita (numa ortografia inventada à pressão) «Κομο τε χαμας;» — e continuaria a ser português… Isto, claro, se os portugueses estivessem para aí virados.
As escritas do mundo são muitas e interessantíssimas. Esta foi uma pequena viagem por seis desses sistemas. Foi também a minha última viagem deste ano nas crónicas do SAPO 24. Desejo-lhe um excelente Fim de Ano — e até 2022!
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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