Não li os livros de Cavaco e Sampaio, por isso retraio a minha opinião sobre tais memórias. Por outro lado, todos os esquecimentos me interessam: têm o vazio necessário para serem objectivos. São inadvertidamente verdadeiros, porque é impossível pendurar enfeites mentirosos num pinheirinho de Natal que sumiu. Refiro-me aos esquecimentos legítimos, nunca aos “não me lembro” das comissões de inquérito.

Metade da minha profissão passa por fazer respiração boca-a-boca a um poço escuro, de forma a ressuscitar lembranças. Dedico-me a cultivar recordações, mas raramente me manifesto sobre apagões de memória. Hoje vou alterar essa ordem e passar a lembrar-me de vezes em que não me lembrei. Tenho umas quantas histórias sobre o assunto e calculo que hoje caberá aqui um par delas. Já que não está nos meus planos um livro de memórias, fica aqui uma espécie de preview do que seria um livro de esquecimentos.

1

Dei aulas durante quase 10 anos. Trabalhar com uma matéria prima volátil como são os adolescentes torna-se, obviamente, num manancial de histórias inesquecíveis. Mas é um curto relato de esquecimentos, com outro professor em vez de alunos, que passo aqui a registar.

O colega

Tive um colega que me perguntava o nome todas as vezes que me via. Quando lho dizia ele confessava que se ia esquecer. E cumpria-o. Gostava desse colega. De uma maneira geral gosto de pessoas que cumprem as suas promessas de esquecimento.

Era um colega que me perguntava o nome todas as vezes que me via. Fazia-o sempre enquanto me apertava a mão. Tornou-se uma combinação matinal tão habitual quanto bica e pastel de nata. Gostava desse colega. De uma maneira geral gosto de pessoas que preferem conhecer-me a reconhecer-me.

2

A história seguinte aponta para o lado do envelhecimento que mais me dilacera a alma. Até há poucos anos gabava-me de ter uma memória próximo da prodigiosa (doentia, chamar-lhe-ão os menos eufemísticos). Conseguia recordar-me com pormenor e sequência de situações muito longínquas no tempo, algumas remontantes aos meus 2 anos de idade. O truque sempre foi “lembrar-me de lembranças”, fazer exercícios de avivamento das coisas que cá estavam guardadas, ir buscar regradamente memórias antigas para lhes renovar o prazo de validade.

Nos últimos anos acumulei distracção e falta de tempo, por isso perdi capacidade de exercitar a memória e as minhas faculdades já não são bem o que eram. Continuo a ter o ano de 1986 quase tão presente como se fosse o de 2016, o problema é que o de 2016 começa a falhar. A minha memória recente está em crise, sobretudo com caras. Não nos lembrarmos de pessoas que nos interpelam é terrível, e põe logo duas vontades em confronto: a sinceridade e o desejo de não se parecer arrogante. Creio que já passámos todos por situações destas.

O cão

Há coisa de cinco, seis anos, estava a deslocar-me a pé por Lisboa quando, pelo canto do olho, me apercebi que a minha passagem tinha causado algum alvoroço dentro dum carro estacionado. De lá saiu uma rapariga que aparentava a minha idade (ficará anónima - não tanto pelo embaraço da história, mas mais pelo embaraço de alguém da minha idade saber que o aparenta) a acenar vigorosamente e a chamar-me pelo nome. A única coisa que consegui reconhecer nela foi a expressão de alguém que me reconhecia. Reconhecia-me até como quem reencontra um amigo outrora próximo.

Era o meu nome que chamava, e era transbordante de familiaridade que o fazia. Dirigi-me a ela com o sorriso largo de quem a correspondia em tão efusiva sensação de reencontro. Estiquei os braços porque o tom de voz dela prenunciava um abraço, que se consumou.

Admitir que não estava a reconhecê-la já seria, por esta altura, um embaraço gigante para ambos. Então fiz o que tão clássico imbróglio exige: escolher frases e assuntos que não me obriguem a dizer o nome do interlocutor; ser lacónico a responder a perguntas (não vão elas abrir caminho a outras mais incisivas); fazer miseráveis questões dissimuladas, na tentativa de recolher pistas que me ajudem a lembrar.

Entre o manhoso “Opá, quando é que foi a última vez que nos vimos?” ou o aldrabado “Não estavas uma vez comigo quando (inserir tanga aleatória)?” percebi que a minha aparência de segurança resvalava, e que isso era um convite à suspeita. Num acto desesperado disse-lhe “Devíamos combinar qualquer coisa. Diz-me aí o teu número”. Erro de principiante, quando eu devia ser já um veterano na matéria.

Número dado, teclei-o no telefone e quase deitei tudo a perder. Com a rapidez dum ninja, ela apareceu por detrás do meu ombro. Era como se quisesse assegurar-se que o nome ia ficar bem inscrito na minha lista – o suficiente para eu suspeitar que ela suspeitava. Foi aí que fui salvo pelo gongo. Salvo pelo pânico! Encurralado, o meu cérebro esperneou tanto que derrubou um balde de memórias. De lá caiu uma recordação pequenina, mas com tamanho suficiente para cancelar o alerta vermelho e repor um seguríssimo alerta amarelo.

“Como está o teu cãozinho?” – perguntei à amiga que pairava em cima do meu ombro. Não estou certo se alguma vez conheci um cão dela ou se foi mero flash facebookiano, mas veio-me a certeza absoluta que àquela cara eu associava um cão. “O Óscar?? Está gigante!” – respondeu enquanto me libertava o ombro e recuperava o tom entusiástico do início, desta vez para contar as diabruras do animal de estimação.

A situação deambulou pacificamente do cão em direcção ao abraço de despedida. Ela regressou ao carro estacionado; eu regressei à caminhada - embora agora num passo evasivo mais acelerado. Para além da rapariga, hoje também mantive o anonimato do animal; “Óscar” foi inventado, era outro o verdadeiro nome. O mesmo nome que ainda está gravado junto ao número de telefone que ela me ditou.

Sítios certos, lugares certos e o resto

Voltemos do que se esquece para o inesquecível: é um sítio minúsculo, a decoração não é propriamente o seu forte, o preço não é excepcional, a estação de rádio de fundo pode surpreender-nos com o mais indigesto eurotechno. Ainda assim, o Bistro Barão em Évora proporcionou-me duas das melhores refeições de que (justamente) me lembro. Perfeição na comida, perfeição na selecção de vinhos e nas opções de digestivos, perfeição no atendimento. Duas pessoas – a chef Margarida e o - cúmulo da simpatia - Sr Miguel são toda a equipa necessária para que uma memória gastronómica jamais se esvaneça.

A Pitchfork a relembrar a Britpop; a relembrar o inesquecível.

Completam-se 25 anos da morte do grande herói do 25 de Abril. Um dos inesquecíveis.

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