
TRIG
1
O Círculo de Sobriedade reúne-se todos os dias na cave da Igreja Metodista da Buell Street entre as quatro e as cinco da tarde. Tecnicamente, é um encontro dos Narcóticos Anónimos, mas também participam vários alcoólicos. O Círculo de Sobriedade costuma ter muita afluência. No calendário, é primavera há já quase um mês, mas em Buckeye City — por vezes conhecida por «Segundo Erro no Lago», sendo Cleveland o primeiro — a primavera chega tarde. Quando a reunião termina, paira no ar uma chuva miudinha. Quando cair a noite, os pingos estarão mais grossos e darão lugar a granizo.
Duas ou três dezenas de participantes juntam-se perto do cinzeiro à entrada e acendem cigarros, porque o consumo de nicotina é um dos dois vícios que lhes restam e, ao fim de uma hora enfiados na cave, precisam de uma dose. Outros, a maioria, viram à direita e dirigem-se para o The Flame, um café que fica um quarteirão mais abaixo. O café é o outro vício a que ainda se podem entregar.
Um homem é intercetado pelo reverendo Mike, que participa nestes encontros e em muitos outros com regularidade; o Reverendo é um viciado em opioides em recuperação. Nos encontros (participa em dois ou três todos os dias), apresenta-se assim: «Amo Deus, mas de contrário sou apenas mais um pecador.» Estas palavras desencadeiam sempre acenos de concordância e murmúrios de aprovação, embora alguns dos mais velhos o considerem um pouco maçador. Chamam-lhe Mike da Bíblia (1) pelo hábito que tem de citar (ipsis verbis) longos excertos do manual dos Alcoólicos Anónimos.
Agora, o Reverendo cumprimenta-o com um forte aperto de mão.
— Não é costume ver-te por estas bandas, Trig. Deves viver no norte do estado.
Trig não vive no norte, mas não o desmente. Tem os seus motivos para ir a reuniões fora da cidade, onde é pouco provável que o reconheçam, mas hoje tratou-se de uma emergência: ou ia a um encontro ou bebia, e depois da primeira bebida não há volta a dar. Sabe-o por experiência própria.
Mike pousa uma mão no ombro do outro homem. — Pareceste perturbado quando falaste, Trig.
Trig é uma alcunha de infância. É assim que se apresenta no início dos encontros. Mesmo nos grupos de AA e NA fora da cidade, raramente participa além da apresentação inicial, ficando- se por «Hoje, vim só para ouvir», mas esta tarde levantou a mão para falar.
— Chamo-me Trig e sou alcoólico. — Olá, Trig — respondera o grupo.
Estavam na cave e não na igreja, mas havia sempre aquela aura de encontro religioso. Na realidade, o Círculo de Sobriedade é a Igreja dos Fracassados e Destroçados.
— Só quero dizer que hoje estou bastante abalado. Não quero dizer mais, mas tinha de partilhar isto aqui. Não tenho mais para dizer.
Ouviram-se murmúrios a dizer «Obrigado, Trig» e «Força aí» e «Continua a vir cá».
Agora, Trig diz ao Reverendo que está perturbado porque perdeu uma pessoa que conhecia. O Reverendo pede pormenores — tenta arrancar-lhos, na verdade —, mas Trig apenas revela que a pessoa que morreu estava encarcerada.
— Vou rezar pela sua alma — assegura-lhe o Reverendo.
— Obrigado, Mike.
Trig começa a caminhar, mas não segue para o The Flame; anda três quarteirões e sobe os degraus para a biblioteca pública. Tem de se sentar e pensar no homem que morreu no sábado. Que foi assassinado no sábado. Que foi esfaqueado no sábado, num chuveiro da prisão.
Encontra um lugar vago na secção dos periódicos e pega num exemplar do jornal local, só para ter algo na mão. Abre-o na página 4, onde consta uma notícia sobre um cão que foi encontrado por Jerome Robinson da Agência Finders Keepers. Há uma fotografia de um jovem negro bem-parecido a sorrir com o braço à volta de um cão de grande porte, talvez um labrador retriever. O título tem uma palavra: ENCONTRADO!
Pensativo, Trig fita o jornal.
O seu nome verdadeiro apareceu neste mesmo jornal há três anos, mas ninguém associou esse homem e o que participa em encontros de viciados em recuperação fora da cidade. Porque o fariam, mesmo que também tivesse sido publicada uma fotografia (que não fora)? Esse homem tinha uma barba a ficar grisalha e usava lentes de contacto. Esta versão está barbeada, usa óculos e parece mais novo (deixar de beber tem esse efeito). Gosta da ideia de ser outra pessoa. Mas também lhe pesa. É esse o paradoxo com o qual tem de viver. Isso e pensar no pai, algo que nos últimos dias tem acontecido com maior frequência.
Deixa lá isso, pensa. Esquece.
Isto é a 24 de março. O esquecimento dura apenas treze dias.
2
A 6 de abril, Trig senta-se no mesmo lugar na secção dos periódicos a olhar para a manchete do jornal de hoje, domingo. O título não diz... grita: BUCKEYE BRANDON: RECLUSO ASSASSINADO PODIA ESTAR INOCENTE! Trig leu a notícia e ouviu o podcast de Buckeye Brandon três vezes. O autoproclamado «fora da lei das ondas hertzianas» é que dera a notícia e para Buckeye Brandon não havia dúvida. Será verdade? Trig pensa que, com base na fonte, deve ser.
O que estás a pensar fazer é uma loucura, diz para si mesmo. O que é verdade.
Se o fizeres, não podes voltar atrás, diz para si mesmo. O que também é verdade.
Quando começares, terás de continuar, diz para si mesmo, o que é a verdade mais verdadeira. O mantra do pai: Levar as coisas até às últimas consequências. Sem hesitar, sem tréguas.
E... como seria? Como seria para ele se fizesse tais coisas?
Tem de pensar melhor. Não só para perceber bem aquilo que está a pensar fazer, mas também para haver um espaço temporal entre o que descobriu por intermédio de Buckeye Brandon (e também por este artigo) e os atos — os horrores — que pode cometer, para que ninguém estabeleça a ligação.
Dá por si a recordar a notícia sobre o jovem que recuperou o cão roubado. Nada mais simples: ENCONTRADO! Trig só consegue pensar no que perdeu, no que fez e no que precisa de fazer para corrigir a situação.
(1) No original, Big Book Mike, sendo «Big Book» uma referência ao manual dos Alcoólicos Anónimos, a sua «bíblia». (N. dos T.)
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