Os factos são simples: no dia 29 de Julho, em Southport, um esgrouviado de 17 anos adentrou por uma escola e com uma faca matou três miúdas de seis, sete e oito anos e feriu dez pessoas. Se fosse nos Estados Unidos, onde 117 pessoas são mortas a tiro todos os dias, provavelmente o único destaque de meio minuto na comunicação social seria o facto das três vítimas serem meninas muito novas. Ou nem isso; em Uvalde, no Texas, em 2022, um esgrouviado de 18 anos matou 18 crianças dentro duma escola.

Mas isto foi na Europa, em Inglaterra. Os assassinos esgrouviados não são habituais. A violência fortuita, isto é, sem uma razão imediatamente discernível, acontece, mas não se compara aos americanos. Segundo uma fonte recente, entre 2009 e 2015, nada é comparável com o índice norte-americano de 28,43; só a França chega aos 22,57 e nos outros países os números são próximos do zero. Mas por ora vamos deixar a França e voltar para a terra de Sua Majestade.

Há facadas aqui e ali, de vez em quando — ainda a 12 de Agosto um maluco esfaqueou uma criança de 11 anos no centro de Londres. Mas a violência não se sente no ar, ou não se espera à espreita a cada esquina. Assim, o caso saltou imediatamente para o espaço público. O esgrouviado foi preso, vivo, mas fora isso nada se sabia dele — já lá vamos.

O que é impressionante é que em poucas horas a mesquita de Southport foi atacada por um grupo de extremistas e os muçulmanos encontrados na rua sovados e enxovalhados. Pouco depois do ataque, Julia Sweeney, uma senhora de 53 anos a viver longe de Southport, viu na TV a mesquita ser reparada e escreveu no Facebook: “Deviam era explodir a mesquita, com toda a gente lá dentro!” Minutos depois, já aquele post tinha viralizado. Outra senhora, Bernardette Spofforth, com 55 anos e mãe de três filhos, escreveu por conta própria que o assassino era a prova de como os muçulmanos nojentos são perigosos.

Até ao fim do dia já todos os sites e redes sociais de extrema-direita estavam a comentar o caso. E as ruas de várias cidades encheram-se de manifestantes dos grupos nacionalistas (chamemos-lhes assim), como a English Defence League, imediatamente confrontados por grupos pró-muçulmanos e de esquerda radical.

A polícia interveio em força, depois de Keir Sturmer ter condenado as desordens como sendo “racistas e intoleráveis” e prenderam até agora 1.165 agitadores. Os tribunais agiram com determinação; segundo a BBC, 623 pessoas foram julgadas por “desordem violenta”, 157 condenadas, e 139 receberam penas de três anos.

Nesta situação, houve uma novidade: as pessoas que postaram online também foram consideradas culpadas. Julia Sweeney apanhou 15 meses de prisão, e Bernardette Spofforth, 20 meses. Kyler Kay, um miúdo de 26 anos, apanhou mais de três anos por incitar a que fossem queimados os hotéis que abrigam candidatos a asilo.

A questão do “incitamento à violência” nas redes sociais tem sido objecto de discussão — aliás, não só na Grã-Bretanha como no resto do mundo —, mas esta é a primeira vez que a lei penaliza os danos que pode provocar. A questão é complicada sob vários aspectos: até que ponto um comentário incita de facto à violência? Não haverá aqui uma limitação da liberdade de opinião? E até que ponto é que as plataformas devem — e podem — impedir a sua disseminação? As leis relativas a difamação e questões afins são muito mais restritivas no Reino Unido do que nos E.U.A. e neste caso provaram também ser decisivas e rápidas.

Mas há mais contornos. Nigel Farage, como não podia deixar de ser, também recorreu às redes e à média para justificar (não se pode dizer apoiar) a atitude estúpida dos manifestantes, como sendo um exemplo de uma tensão racial/religiosa que ele diz que existe no país — embora o bom senso diga que não é bem assim. Mas Nigel Farage é membro do Parlamento, pode dizer o que quiser sem sofrer consequências.

Agora, o que dizer de Elon Musk? Sim, estamos a falar do segundo homem mais rico do mundo (depois de Jeff Bezos), nascido na África do Sul, residente nos E.U.A. e apoiante de Trump. Musk, que não perde uma oportunidade de se por na ponta dos pés e tem opiniões sobre tudo, escreveu na sua plataforma X que “a Grã-Bretanha está à beira de uma guerra civil!”. Só remotamente poderá ser julgado em Inglaterra por tal dislate, mas devia (opinião minha) de ser proibido de lá por os pés, já que não pode ser amordaçado.

Agora, o aspecto mais surreal de tudo isto: o esfaqueador é inglês, não emigrante (nasceu no Reino Unido), e cristão! Ou seja, toda esta agitação é baseada num pressuposto falso e só se veio a saber a verdade porque o juiz do caso resolveu revelar a sua identidade (sendo menor, não podia) para ver se pára de vez com a histeria da direita nacionalista xenófoba. Mas o mal está feito.

(Já agora, e como prometi mais acima, o caso do esfaqueamento em Londres: o criminoso é muçulmano, mas o segurança privado que o prendeu é um imigrante paquistanês, também muçulmano. Os estereótipos são perigosos.)

É a altura de falar da imigração para a Europa em termos mais gerais. No caso da França, os magrebinos (da Argélia, Marrocos e Tunísia) sempre emigraram sem problemas de maior. Só a partir de 1962, com a independência da Argélia, é que o movimento de magrebinos e “pieds noirs” (os franceses que tiveram de voltar para França) atingiu valores brutais — mais de um milhão. Esta situação difere completamente da inglesa; devido à sua política colonial e pós-colonial (a Commonwealth) os ingleses sempre tiveram um enorme afluxo de imigrantes, sobretudo da Índia e do Paquistão. Então, a sociedade inglesa, mesmo sendo naturalmente xenófoba, absorveu com menos problemas os imigrantes que, ao contrário dos que foram para França, queriam era integrar-se, paz e sossego. Ultimamente os muçulmanos têm sido mais vocais, mas dedicam-se sobretudo ao pequeno comércio, ao contrário de França, onde basicamente não conseguem arranjar emprego.

A Alemanha é outro caso: desde o princípio deste século mais de quatro milhões de turcos — 5% da população — vive e trabalha no país, sem maiores problemas. Não se integram muito, mas também não chateiam.

A origem dos imigrantes também conta, portanto. Na Suécia, foi a partir de 1960 que se começou a instalar uma maioria de sírios, egípcios e palestinianos, nitidamente mais refractários á integração do que os turcos. Actualmente a Suécia tem 5,6% de árabes e não está a conseguir integrá-los como gostaria.

Ao falar de imigrações, há vários conceitos que se confundem e contradizem. Uma coisa é o nacionalismo, a ideia de que “nós” somos superiores aos “outros”. Outra é a xenofobia, a rejeição dos estrangeiros. Outra ainda é animosidade religiosa, a não aceitação de uma religião diferente. A Europa é cada vez menos religiosa, mas não tolera o fanatismo dos muçulmanos. Outra, ainda, é a sobrepopulação e a procura de trabalho, a ideia de que os estrangeiros são demais e nos roubam os empregos — o que é falso, primeiro porque a população da Europa está a diminuir e segundo porque em geral fazem os trabalhos que nós não queremos fazer.

Podemos colocar todos estes problemas sob a etiqueta de racismo? Podemos, mas a verdade é muito mais complexa e, logo, mais difícil de resolver. Em certos países são os hábitos culturais que provocam choque, noutros são as diferenças religiosas, noutros ainda — como é o caso de Portugal — é a ineficiência da política oficial em tratar dos imigrantes — legalizá-los, integrá-los, absorvê-los na população em geral.

Felizmente não temos tido grandes problemas — quem os tem são os imigrantes, que não conseguem legalizar-se e não beneficiam de programas que os ajudem a integrar-se; falar o idioma seria o mínimo.

O caso da Grã Bretanha parece esporádico e o da França longínquo; mas se não atinarmos numa política coerente, o nosso dia da tempestade perfeita chegará. Convém lembrar que os imigrantes (legais ou pelo menos catalogados) já são quase 10% da população. Os brandos costumes têm um limite.