Findas estas eleições Presidenciais, acordei esta manhã angustiada, com um sentimento que sei que é partilhado por muita gente: recuso-me a aceitar que, no meu país, 60% das pessoas que podem votar escolhem não o fazer, e que 12% das que votam, decidiram escolher forças autoritárias e antidemocráticas.

Ouvi com atenção os principais comentadores e analistas políticos, na televisão, na rádio e nas redes sociais, em busca de respostas, de explicações do que está a acontecer e de soluções ou de planos de ação.

São importantes as conversas sobre o que podemos fazer já, para tentarmos reanimar a participação dos cidadãos nas eleições e travar o crescimento do populismo nacionalista, pensando nas eleições autárquicas daqui a oito/nove meses e até nas legislativas daqui a dois anos e meio. Mas também sinto que estamos a perder de vista um quadro de ação mais alargado.

Pensando concretamente em Portugal – que não é a França, nem o Brasil, nem os Estados Unidos –, esse quadro mais alargado passa, pelo menos, pela consideração de dois aspetos estruturais: o primeiro, o défice de informação e de compreensão do sistema político; o segundo, da fraqueza da prática democrática na nossa cultura e da ausência de planos para a refortalecer.

Vamos, primeiro, ao elefante na sala.

Muito pouca gente em Portugal está informada e compreende o básico acerca do nosso sistema político. Como é a nossa Constituição? Que órgãos de soberania existem? Como são escolhidas as pessoas para ocupar estes cargos de poder? O que é a União Europeia e como é que funciona? Que diferenças existem entre esquerda e direita? Que impostos existem, porquê e como é que escrutinamos o seu destino? Como está regulado o trabalho, a saúde, a educação, a habitação? Como posso ter acesso à justiça e aos Tribunais? O que são mercados financeiros?

Completamos 18 anos e concedem-nos o direito ao voto, mas ninguém nos explica, de forma clara e acessível, como tudo isto funciona e o que está em causa. Algumas respostas a estas perguntas vão surgindo ao longo da nossa vida, por nos cruzarmos com burocracias ou problemas para resolver, e vamos ganhando umas noções, vagas, superficiais, parciais, sempre com a sensação de que não dominamos nada disto.

Quando ligamos a televisão ou lemos os jornais, temos a sensação de que aquelas pessoas falam e escrevem para quem já apanhou o comboio, para quem já domina os conceitos. A partir daí, só existem dois caminhos: ou fazermos um esforço ativo para nos instruirmos e tentarmos estar minimamente a par do que se passa – o que requer tempo e recursos – ou, muito simplesmente, desistimos e alienamo-nos da política – o que é particularmente tentador se as pessoas à nossa volta fizerem o mesmo.

Ora, como é natural, não existe vontade de participar naquilo que não se conhece nem se compreende. Ao contrário do que leio e oiço frequentemente em vésperas de eleições, arrisco-me a afirmar que a maioria dos abstencionistas não são motivados por uma preguiça displicente ou por uma convicção de que o seu voto não muda nada. Com probabilidade, a decisão de não votar assenta num pressuposto que é de bom-senso: para que é que eu vou votar, se percebo pouco do que se passa? Se o meu voto não for baseado numa escolha informada e esclarecida, não será melhor abster-me e deixar escolher quem percebe disto?

Estou convencida de que não se fala mais abertamente deste défice de informação e compreensão da política porque, culturalmente, consideramos que é uma vergonha admitir ou revelar ignorância. Por outro lado, quem não é ignorante e tem plataforma e audiência para falar sobre isto, tem medo de soar condescendente e ser criticado por isso.

Veja-se que este não é um problema específico de classe, embora seja (sempre) um fator a considerar. Mesmo as classes socioeconómicas mais privilegiadas são genericamente pouco esclarecidas quanto a muitos destes temas.

Acredito que este é um dos motivos que explica a abstenção em números elevados, (entre outros fenómenos), mas que, infelizmente, não tem recebido a devida atenção.

Mesmo que não se concorde com esta premissa, certamente não se obstará a que se invista mais e melhor na formação dos cidadãos sobre o funcionamento do nosso sistema político. No mais, deve ser relativamente consensual que se deve evitar que o pouco conhecimento de base que chega aos eleitores seja através de páginas avulsas na Internet, sem qualquer controlo de qualidade e rigor técnico, nem sequer de veracidade mínima.

A tarefa de dotar os cidadãos de informação e compreensão sobre o nosso sistema político deve ser primordialmente uma tarefa da Escola; em especial, da Escola Pública.

Antes dos 18 anos, idealmente no ensino secundário, tem de ser explicadas, de forma simples e acessível, mas rigorosa e tão completa quanto possível, as bases de como funciona a nossa democracia e os mínimos sobre o nosso sistema político. Não falo de ensinar aos alunos diferentes ideologias políticas; falo de ensinar sobre o atual funcionamento das instituições democráticas e de poder, e sobre os direitos e deveres básicos de cada cidadão. Algo na linha do que foi defendido no ano passado pelo Prof. Jorge Mirada, no Público.

Curiosamente, esta é uma medida que reúne consenso na sociedade portuguesa como poucas outras.

Por ocasião da discussão sobre a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, foi unânime entre políticos e comentadores que a inclusão do tema “instituições e participação democrática” era bem-vinda (embora seja manifestamente insuficiente, por estar incluída numa lista de cinco diferentes temas que devem ser “trabalhados pelo menos em dois ciclos do ensino básico”); por outro lado, já é clássica a queixa dos alunos do ensino obrigatório de que a Escola “não prepara para a vida adulta; não ensina sobre impostos, sobre política, sobre trabalho ou sobre finanças pessoais”.

No entanto, não obstante o grande consenso em redor desta necessidade e da sua manifesta importância para combater os níveis de abstenção proibitivos, não tem existido vontade política para dotar os cidadãos deste conhecimento e destas ferramentas. Talvez este seja um bom timing para o exigirmos com mais convicção.

Porém, mais informação e domínio sobre como funcionam as instituições democráticas e de poder, por si só, não basta. Pessoas muito informadas e até grandes intelectuais podem ser – e são, muitas vezes – subscritores de soluções políticas autoritárias, fascistas e antidemocráticas no geral.

É aqui que entra o segundo tema deste texto: a fraqueza das práticas democráticas na nossa cultura e a ausência de planos para a desenvolver.

Para que a democracia faça sentido enquanto proposta de sistema político, é necessário, em primeiro lugar, que o povo que decide seja e esteja informado e, para isso, livre das amarras da pobreza e da precariedade, para se dedicar a algo mais que não seja a sua sobrevivência e a da sua família e aos alívios desses pesos.

Mas, em segundo lugar, é também preciso que se cultive uma cultura em que as pessoas sejam recetivas a opiniões contrárias à sua, que estejam disponíveis para o diálogo, para a negociação e para a construção dinâmica de maiorias. Que aceitem os desideratos da transparência e do escrutínio, e, em última instância, que aceitem ser governados por quem consideram ser os seus opositores políticos, se tal resultar da vontade da maioria.

Não utilizei o verbo “cultivar” ao acaso: tudo isto se constrói ou desconstrói, consoante a vontade de quem tem maior poder. Em Portugal, associamos a democracia à liberdade e, concretamente, à Revolução do 25 de abril de 1974. Mas embora o 25 de abril seja genericamente percecionado como algo positivo pela maioria dos portugueses, falta sedimentar essa cultura de participação e de jogo democrático.

Aqui olho diretamente para as elites socioeconómicas que ontem escolheram, esclarecidamente, dar força a partidos de índole autoritária (parte considerável daqueles 12%). Em rigor, estas pessoas não são democratas: estão confortáveis em impor a sua visão do mundo aos outros; não estão interessadas no diálogo; lidam mal com a crítica e com o escrutínio; e não estão comprometidas com o progresso.

Não vamos a tempo de alterar estas simpatias antidemocráticas a tempo das eleições autárquicas deste ano nem, muito provavelmente, das eleições legislativas de 2023. Mas se a democracia está ameaçada – e, neste momento, só não vê quem não quer ver –, então a resposta tem de ser reforçá-la.

O voto é o grau mínimo da participação democrática, ou seja, a democracia portuguesa mal cumpre os mínimos.

Reforçar a democracia significa, entre outras coisas, estimular a participação das pessoas na sociedade civil: incentivando a que se juntem a associações que se dediquem a causas que lhes sejam próximas; a partidos políticos, regenerando-os com novos quadros; reforçando urgentemente o poder local, designadamente através do processo de regionalização; investindo na criação de assembleias de cidadãos, em que qualquer pessoa possa integrar o debate sobre a regulação de determinado tema; impor uma limitação de mandato único aos deputados da Assembleia da Républica que permita maior rotatividade, combatendo os “políticos de profissão” e abrindo as portas da democracia a mais gente.

Se queremos reforçar a democracia, temos de lutar para ter cidadãos informados, dotados de espírito crítico, envolvidos na vida pública e exigentes com quem governa e com quem escrutina.

Há muito trabalho a fazer, mas também há muito democratas comprometidos com esse trabalho.

Neste dia em que acordámos ameaçados, resta-nos arregaçar as mangas e inspirarmo-nos nas palavras de Ary dos Santos: “De tudo o que Abril abriu / ainda pouco se disse / e só nos faltava agora / que este Abril não se cumprisse. / Só nos faltava que os cães / viessem ferrar o dente / na carne dos capitães / que se arriscaram na frente.”

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