Se há vinte anos me perguntassem se as touradas ainda seriam um tema de actualidade em 2018, diria que não e que, por esta altura, os touros já andariam em skates voadores sem serem incomodados com bandarilhas no lombo. Não sendo Júlio Verne, enganei-me e as touradas voltam a ser destaque com um projecto para a sua abolição a ser chumbado no Parlamento. Já se estava à espera, quando sabemos que por lá se trata o assunto como uma questão política e não de progresso civilizacional. Dos que votaram contra, a maioria fê-lo a pensar nos votos e não por convicção pessoal, mas talvez concorde que a melhor forma de avançar, para já, não seja proibir a tourada, mas primeiro perceber o porquê de ainda haver gente a apelidar de arte o que não passa de tortura animal em praça pública.

Em conversa com um aficionado, ouvi o argumento “Porque a tourada surgiu como um ritual digno de matar um touro para o comer. Uma luta de igual para igual em que é dada a oportunidade ao touro de ganhar a luta, ao contrário do que é feito em matadouros”. Pareceu-me o melhor argumento que já ouvira até então, romântico e que poderia colocar as minhas convicções em xeque. Depois, pensei dois segundos e percebi que o argumento era parvo, como todos os argumentos que defendem a tortura animal em prol do entretenimento humano.

O touro tem chifres e o toureiro tem bandarilhas, aqui concordo que existe um pé de igualdade, já que se o toureiro fosse com uma AK-47 a tourada era mais desigual, acabava depressa e não fazia valer o dinheiro do bilhete. No entanto, o toureiro costuma ir a cavalo o que é logo uma desvantagem para o touro. Depois, que tal experimentar fazer tourada num descampado em vez de numa arena? Num descampado, o touro tinha a opção de ir embora e isso tornaria a luta mais justa. O animal quadrúpede poderia olhar para o marmanjo em lantejoulas e pensar “Não estou para isto, tenho uma consulta às 17h e vou ter de abalar”, virava costas e ia à sua vida. Uma luta nunca pode ser justa quando se coloca um dos seus intervenientes entre a bandarilha e a parede, pois nesse caso, resta-lhe apenas lutar e não a via diplomática.

Mais: e se o touro ganha? Os touros que já mataram toureiros receberam uma carta de alforria e foram gozar a reforma para o Algarve? Não me parece. Esta suposta luta de igual para igual apenas tem um desfecho para o touro e nunca é o da vitória. Por muito que lute e não se deixe apanhar ou espetar, por muito que marre no toureiro, no cavalo e nos forcados, o seu final é sempre o mesmo: o sofrimento para gáudio humano e, sem seguida, a morte.

“E os forcados?”, perguntarão alguns, dizendo que é a única parte que gostam da tourada e que é mais justa. Concordo, é a mais justa, mas os cornos do touro estão serrados e os agro-betos “corajosos” só aparecem no fim quando o touro já está cansado e a babar-se; o peso combinado dos forcados é maior do que o dos maiores dos outros; por último, usam golpes baixos: imaginem o que seria estarem à porrada na rua e um dos vossos adversários agarrar-se ao vosso rabo. Não se faz.

Não perco o sono a pensar nos touros, claro que há coisas muito piores na nossa sociedade, mas abolir as touradas seria um passo importante para um caminho que me parece o certo e que é o de uma sociedade menos cruel e mais civilizada. No entanto, mais do que as touradas serem proibidas, o que eu gostava mesmo é que as pessoas deixassem de as apreciar e percebessem que não passa de tortura. Isso, sim, seria um avanço civilizacional. Há quem defenda o referendo sobre este tema, mas parece-me uma luta mais desigual do que a tourada em si porque muitos dos aficionados não sabem ler.

Sugestões e dicas de vida completamente imparciais:

Um filme: Gerald’s Game, baseado numa obra de Stephen King e disponível na Netflix.

Um podcast: Três Pancadas com Sam the Kid, Sir Scratch e João Moura.

Um evento: NOS Alive, em especial o Palco Comédia, dia 12, às 21h55.