É um desastre como o dos serviços secretos do EUA que em 11 de setembro de 2001 não souberam antecipar o ataque às Torres Gémeas. Agora, o Hamas, como braço armado do Irão, não ataca apenas Israel, mas também a normalização em curso entre Israel e a Arábia Saudita, ao mesmo tempo que entala os rivais internos da Fatah/Autoridade Nacional Palestiniana.

É uma operação sem precedentes esta em que o Hamas conseguiu romper todas as barreiras e entrar no fortificadíssimo território de Israel em operação militar de larga escala às 6 da manhã do passado sábado.

A tragédia para o tão obcecadamente securitário governo de Israel é, para além da humilhação dos tão afamados serviços secretos, o desastre desde já em vidas perdidas e a terrível angústia de tantos reféns, civis e militares, algumas crianças e idosos, que o Hamas levou para Gaza e que passam a funcionar como escudo humano e valiosíssima futura moeda de troca. Estima-se que os israelitas reféns às mãos do Hamas serão mais de 160. Um desespero para o povo de Israel. Como se o Hamas quisesse dar a provar aos israelitas uma porção do desespero da vida sufocada e muitas vezes aterrorizada em Gaza.

Materializaram-se os piores medos dos cidadãos israelitas que vivem em lugares próximos da Faixa de Gaza. Foram atacados com grande violência e foram capturados e feitos reféns, com horizonte de vida muito incerto.

Cinquenta anos e um dia depois da guerra do Kippur (6 de outubro de 1973), quando os serviços secretos israelitas também não souberam prever o ataque do Egito e da Síria, agora, a ofensiva surpresa aconteceu ao amanhecer. Os guerreiros do Hamas não só derrubaram os muros terrestres israelitas, também entraram pelo mar e pelo ar.

Os instrumentos de ataque usados pelo Hamas são paupérrimos na comparação com a potência do armamento israelita. Muitos planadores asa-delta serviram para colocar combatentes do Hamas em missões de terror dentro de Israel, com tudo registado em vídeo e difundido pelas redes sociais em campanha de propaganda e intimidação.

Não há espaço para dúvidas: o Irão dos aiatolas de Ali Khamenei apoia abertamente este assalto armado do Hamas contra o “inimigo sionista”. Teerão, líder do mundo xiita, quer a todo o custo evitar que se concretize um desenvolvimento geopolítico transcendente para toda a região: a normalização que tem estado a ser negociada entre o mundo sunita (Arábia Saudita, com Meca no seu território) e Israel. Para o Irão, há que fazer tudo para manter a tensão no equilíbrio instável entre poderes hostis no Médio Oriente. No imediato, para Teerão, é prioritário evitar que a aliança americano-israelita se funda com a americano-árabe.

A perspetiva de violentíssima retaliação israelita sobre Gaza, com inevitável massacre de civis, vai seguramente levar a Arábia Saudita, liderada com grande astúcia por Mohamed bin Salman, a colocar em ponto-morto a normalização com Israel, tão desejada por Netanyahu. O reconhecimento de Israel pela potência saudita fica processo suspenso porque o mundo árabe não suportaria a aliança com Israel que nega aos irmãos palestinianos o direito a um Estado soberano.

O Hamas, ao desencadear este surpreendente sofisticado ataque a Israel também está a encurralar o rival interno, a Fatah e a vetusta e corrupta Autoridade Nacional Palestiniana (ANP). Por um lado, o Hamas mostra ao povo palestiniano, exausto por décadas de opressão israelita, que é apenas o Hamas e não a Fatah quem conduz o combate pela libertação. Por outro, o debilitadíssimo Macmud Abas, líder da ANP, vê-se obrigado a solidarizar-se com os rivais palestinianos e a congelar o relacionamento subterrâneo (de facto, ineficaz) com negociadores de Israel.

Permanecem agora muitas incógnitas, a principal para o imediato: por quanto tempo e com quanto sofrimento vai prolongar-se esta guerra que ficou aberta? Mais: esta guerra pode oferecer alguma possibilidade de solução negociada para a eterna questão palestiniana? Será que o turco Erdogan, para além de personagem central na negociação de soluções para o fim da guerra na Ucrânia vai também ser o mediador central no conflito na Terra Santa? Ele estará pronto para esse protagonismo.

Muita negociação deve estar a ser explorada na sombra.