Quando era nova era uma estampa, era assim que dizia, e nós sabíamos ser verdade: existem belas fotografias que o comprovam. Era católica praticante e ainda devota do Sporting. Espero que sejam campeões, que ela apreciará o feito lá onde estiver.

Durante muito tempo fomos quatro gerações: ela na primeira, a minha mãe e os meus tios na seguinte, o meu irmão, o meu primo e eu e, por fim, os meus filhos. Quando uma pessoa morre aos 88 anos não se pode reclamar surpresa, nem injustiça, mas podemos sentir tristeza. Em dias de pandemia, os rituais da morte são limitados. Faltam os abraços, as expressões faciais por inteiro, sem interferência da máscara. A minha avó nunca compreendeu o vírus e as suas circunstâncias. Não chegou a ser vacinada. O coração desistiu nestes tempos e a vida continua. Um dos meus filhos perguntava-me como é possível a vida continuar. A morte leva a estas questões existenciais, já se sabe que as respostas são menos assertivas do que gostaríamos, sabem sempre a pouco.

As redes sociais tornaram-se o anúncio de jornal que anuncia a morte de alguém. As crónicas, pelos vistos, também servem para exorcizar tristezas e promover memórias. Há uns tempos, cá em casa, a minha avó tomava o pequeno-almoço à cabeceira, ficava sempre com a presidência da mesa, e comia laranja descascada que era fruta que apreciava. O telemóvel tocou e era uma amiga (a minha avó cultivava as amizades com artes de delicadeza e grande disponibilidade para o Outro). Eu andava por ali, no corredor, a caminho da cozinha, e ouvi-a dizer: “Sim, estou muito bem, a casa da minha neta é muito boa... bom, tem uma fotografia de um bidon de gasolina na sala, e isso eu não percebo, mas sabes como são os jovens e a arte”. Ri-me a bom rir. Para já, por me dizer “jovem” e depois por nunca ter pensado na fotografia, da autoria de Augusto Brázio, como a fotografia de um “bidon de gasolina”. Tivemos, felizmente, muitos momentos assim, feitos de riso e de equívocos inofensivos. Não concordávamos em tudo – que seria? –, mas existia benevolência e a vontade de perceber a opinião dela e a dos outros. Era crucial para a minha avó tentar perceber.

Gostava muito de ler e, certas vezes, comentou comigo que tinha dificuldade em perceber algumas das minhas abordagens, nos livros que escrevo. Numa ocasião perguntou-me como é que eu escrevia sobre sexo. E eu devolvi a pergunta: “Como?” Ela riu-se e concluiu: “Pois, faz parte da vida”. A vida dela, se contada em pormenor, tem muitos abismos, alguns infernos, uma mão-cheia de coisas infelizes e atribuladas. Não falava sobre isso com frequência, era uma forma de se manter na sua escolha pelo positivo, pela possibilidade de alegria e pela esperança. Pouco antes de morrer, a minha avó combatia o esquecimento e fazia páginas de letras, como as crianças. Desenhava as letras para que se mantivessem dentro dela, para não as perder. Nunca as perdeu. O coração desistiu. Nós ficámos entre a tristeza e o alívio de não a ver sofrer. Quando se perde uma avó assim, há uma parte do mundo que se vai com ela e uma outra, um verdadeiro tesouro, que se mantém connosco, para sempre, dentro de nós.

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