Há uns tempos, rodou por aí a notícia de que a Hyundai decidira criar um novo modelo de carro e lhe dera um nome capaz de chamar a atenção ao português menos interessado na indústria automóvel. Digamos que o nome do carro era um belo e sonoro palavrão português. Nem o «K» ali no início disfarçava. Mas donde vinha esta palavra? De um nome havaino, que não tem qualquer mal aos ouvidos de quem fala outras línguas...

A Hyundai lá descobriu que o nome era suficiente para que muitos portugueses não comprassem o dito carro. Vai daí, mudou o nome para Kauai, que também fica no Havai e sempre permite dizer o nome do automóvel novo à sogra.

Já no reino que nos rodeia por todos os lados menos pelo mar, a marca decidiu manter o nome original – o que não fará mal a ninguém, pois todos sabemos que a asneira espanhola é outra. Só que… enfim, ali no recanto que está por cima de Portugal, a asneira é a mesma! Um galego vê passar um Kona e faz o mesmo sorriso que um português.

É verdade: dum lado e doutro da fronteira a norte, muitos dos palavrões são os mesmos. Mas sobre essa Comunidade Galego-Portuguesa do Palavrão falaremos noutro dia. Agora, proponho que entre comigo num belo Kona. Partamos à procura da origem do palavrão.

Vou eu no lugar do pendura.

A primeira paragem é mesmo na Galiza: afinal, se os galegos também têm a palavra, é bem provável que já existisse nos primórdios da nossa língua...

E antes disso?

Não estamos numa biblioteca – enquanto seguimos pela estrada fora, procuro no meu telemóvel a origem do palavrão.

Encontrei vários dicionários e páginas sobre etimologia. Dizem-me todos que o nosso palavrão vem da palavra latina «cunnus». O significado já era o mesmo que a palavra actual, embora a força talvez não fosse precisamente a mesma. Afinal, chegou a ser usada como representação metonímica de «mulher». Era possível encontrar um «cunnus» num poema romano sem que a avó do leitor pestanejasse.

Esta palavrinha latina deu origem ao nosso palavrão, mas também ao «coño» castelhano – que tem um género diferente –, ao «cony» catalão, ao «con» francês – um palavrão um pouco menos forte – e ao «conno» italiano – que, curiosamente, parece ser uma palavra literária e arcaica…

Isto é muito giro, mas eu quero mesmo é a origem indo-europeia da palavra. Que ligações perigosas encontro? Talvez o palavrão tenha a mesma origem do que uma qualquer palavra inglesa ou alemã muito inocente… Era engraçado, não era?

Enquanto rodamos pelas estradas de França, já bem longe da Galiza onde esta história começou, abro o Wiktionary, um dicionário criado pelos leitores com uma grande quantidade de etimologias. Por lá, aparece a indicação que «cunnus» tem uma origem obscura e há várias teorias sobre a sua origem. Uma delas faz-me bater com a mão no tabliê. É isto mesmo!

Pelos vistos, uma das teorias afirma que «cunnus» terá origem na palavra indo-europeia «*gʷḗn», que significa «mulher». Ora, esta raiz indo-europeia deu origem à palavra proto-germânica «*kwēniz» e, depois, à palavra do inglês antigo «cwēn» e, por fim, à palavra inglesa «queen».

A rainha! O título da rainha tem a mesma origem… enfim, que o nosso palavrão.

O leitor que me acompanha pôs o prego a fundo. Chegamos ao Palácio de Buckingham e deixamos a rainha entrar. Lá seguimos, no nosso Kona, com a senhora no carro para lhe explicar este facto curioso sobre o seu título…

Ora, o Wiktionary é muito bom, mas perigoso: não sei quem enfiou lá aquela informação… Tinha de confirmar. Procurei, procurei, enquanto percorríamos verdes estradas inglesas com a rainha sentada no banco de trás.

Percebi então que a teoria é muito frágil. Não me aparecem corroborações noutras fontes. A ideia que mais encontrei é esta: a palavra latina «cunnus» terá vindo de «*(s)keu-», que significaria algo como «cobrir» – em inglês, esta raiz deu origem, depois de muito desbaste, ao verbo «hide» («esconder»). Por que razão o verbo cobrir do proto-indo-europeu deu origem ao «cunnus» latino e aos seus atrevidos descendentes é pergunta que ficará para outro dia.

Tive de travar o carro. Disse à simpática senhora para sair – nada de pessoal, mas um artigo destes quer-se rigoroso. Ela não se importou, saiu, e sentou-se na paragem do autocarro à espera do 708 para Buckingham Palace. Lá seguimos sozinhos no Kona imaginário.

Sozinhos e sem saber para onde ir. Parece que não há maneira de saber a origem remota do nosso palavrão. Não é nada de espantar: o mesmo acontece com todas as palavras. Muitas delas têm percursos que acompanhamos, com mais ou menos segurança, até ao nosso conhecido proto-indo-europeu. Para trás do proto-indo-europeu, o silêncio. Milhões de pessoas ao longo de dezenas de milhares de anos falaram sem parar e não deixaram vestígios.

Ou melhor, até deixaram: as línguas que falamos. Mas não nos deixaram a explicação da origem do nosso grande palavrão...

Desta viagem frustrada, fique-nos isto: os galegos têm vários palavrões curiosos; Horácio usou «cunnus» para representar uma mulher; a palavra «queen» tem origem na palavra indo-europeia para «mulher». Enfim: não se perdeu tudo!

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é Pontuação em Português.