Por norma, é de evitar utilizar o lugar-comum "o mundo está virado do avesso", porque habitualmente essa afirmação não vem acompanhada de provas suficientes que sustentem que, efetivamente, anda tudo ao contrário. No entanto, nos últimos dias, o Presidente da República publicitou um suplemento de proteína que substitui uma refeição, ao passo que uma concorrente do Big Brother se emocionou a comer Bacalhau à Gomes de Sá. Julgo que, neste caso, é incontestável a justiça do recurso ao chavão.
Toma Fortimel que já almoçaste. Nos últimos dias, os hábitos nutricionais do Presidente da República têm sido amplamente debatidos no espaço público, depois de uma reportagem da SIC ter acompanhado a rotina do Presidente em início de segundo mandato. Como já tinha revelado durante a campanha, Marcelo assumiu que substitui o almoço pelo consumo de um suplemento nutricional chamado Fortimel. Esta não é a primeira vez que o Presidente forja refeições. No passado, Marcelo fingia ter sorvido uma vichyssoise. Hoje, o Presidente bebe uma mistela. Antes, enganava jornalistas; hoje, engana a fome.
Como português, é inevitável começar a pensar em cenários de crime lesa-pátria. Estamos a falar do país em que um almoço se pode estender por horas e em que a marmita não vingou para além dos anos da troika. Marcelo diz ter 10 minutos para almoçar, mas não seremos uma democracia plena enquanto não estiver constitucionalmente garantido o direito a uma hora completa de almoço, a começar pelo Presidente da República. A imagem internacional do país está em causa: tanto se gozou com Trump por se alimentar quase exclusivamente de fast food, quando em casa temos um senhor que se contenta com uma espécie de batido pesadão. Não quero viver num país do Fortimel com sabor a pastel de nata ou da barra proteica de francesinha.
Quem também não acha grande piada a isto são os nutricionistas. Ao que consta, o suplemento em causa é suposto ser utilizado para fins medicinais, não para propósitos de “tenho uma reunião agora à uma e meia”. Aparentemente, a banalização do consumo desta bebida pode colocar em causa a comparticipação do Estado deste tipo de suplementos, algo que daria jeito a pacientes que efectivamente não podem comer mais nada. O próprio Marcelo admite que experimentou o produto quando foi operado à hérnia. Ou seja, o Presidente preferiu continuar a alimentar-se quotidianamente de algo que é dado a pessoas hospitalizadas - esperemos agora que não chame um anestesista quando decide que é hora de ir dormir.
Numa altura em que Portugal suspendeu a administração da vacina da AstraZeneca, é necessário que o Presidente recorra ao poder da palavra para descansar os portugueses em relação à fiabilidade e segurança do processo de vacinação. As próximas semanas serão prolíferas em desinformação, desacreditação do consenso científico e validação do discurso anti-vacinas. Mas talvez fosse aconselhável que Marcelo se dirigisse ao país sem uma garrafinha de Fortimel na mão. Não é compatível confiar na mesma medida em cientistas e em poções mágicas.
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