Mantenho-me assustado com a vitória de Bolsonaro. Triste. Zangado, até. Apesar desta revolta, ainda assim quero distanciar-me doutros revoltosos. Neste momento anda a fazer-se por cá uma recriminação abjecta do eleitorado brasileiro, sobretudo a comunidade que vive e vota em Portugal. Obviamente são os eleitores os responsáveis finais pelo lamentável empossamento da extrema-direita, mas a nossa resposta também está a ser lamentável. A intransigência com que reagimos à vontade soberana dum povo começa a cair no ódio, a roçar a xenofobia.
Dirijo-me aos meus compatriotas que, tal como eu, nunca desejaram Bolsonaro no poder. Mas, mais especificamente, viso os portugueses que agora se apressaram a amesquinhar o povo votante; viso os portugueses que logo vieram apelidar os eleitores de fascistas, ou de cegos, ou de burros. Querem chamar esses brasileiros à realidade, mas esquecem-se que as nossas realidades são distintas. Continuo a achar a ascensão da extrema-direita um erro enorme, mas é um erro enorme com justificações visíveis, um erro enorme com motivos que se atenuam mais do que estamos dispostos a admitir.
Fomos condescendentes ao ponto de achar que só os irracionais e os raivosos é que votariam em Bolsonaro, e essa nossa condescendência está a tornar-se irracional e raivosa. Ignoramos que aqui, nesta minúscula cauda da Europa, respiramos com mais segurança e tranquilidade do que naquela terra gigante para lá do Atlântico. O país onde abunda oxigénio amazónico está asmático; nós estamos míopes.
Numa nação com corrupção política tão sistémica, e com crime violento tão banalizado, é natural (repito: natural) que um eleitor se torne sensível a discursos políticos agressivos. Cidadãos vencidos pelo cansaço, sequiosos de lei e ordem, são cidadãos a quem até o fascismo vai parecer água de coco. O populismo torna-se refrigério, e a partir daí o povo já não se contenta com justiça - quer um justiceiro. Quer um vingador. Quer abdicar da sua própria liberdade se isso o fizer sentir mais seguro e vindicado. Admite a treva, se a treva trouxer sombra para descansar.
Neste contexto, julgarmos que a opção Bolsonaro só apela a mentecaptos e brutos é padecermos duma óbvia cegueira primeiromundista. Cá, damo-nos ao luxo de censurar o fogo de artifício pelo susto que prega aos passarinhos, mas depois queremos opinar com propriedade sobre um país onde tiros de revólver são banda sonora ininterrupta de muitas cidades. Tentamos chamar à realidade uma realidade que nos ultrapassa.
Bolsonaro permanece um erro, permanece um perigo – defenderei esta ideia até que lhe termine o mandato –, mas não deixa de ser verdade que Bolsonaro também permanece uma purga. Onde andou a nossa palmatória para com a corja até agora dominante? Tendo em conta o “sistema”, tendo em conta o que eram os interesses instalados no Brasil, Bolsonaro ganha uma aura de rebelde revolucionário que nem sequer foge à verdade. Haddad (em quem eu votaria por exclusão de partes) podia ser o melhor candidato do mundo, mas no fim de contas também podia ser a melhor lima escondida dentro dum bolo para Lula. O dilema “extrema-direita” vs “impunidade judicial da esquerda” nas urnas é mais complexo do que nos dispomos a aceitar.
Não se enganem: quero pouco redigir uma apologia dos eleitores de Bolsonaro, apenas me insurjo contra a demonização que deles se tem feito. Também não estou a ignorar todos os maus motivos que levaram muitos brasileiros a votar na extrema-direita – sei que houve gente violenta, racista, ou misógina que usou esta eleição como pretexto para legitimar os seus ódios (exactamente dando poder a um homem violento, racista e misógino). Não ouso, contudo, meter todo o eleitorado de Bolsonaro neste saco; não generalizo o eleitorado como uma massa de pessoas dotadas de tão odiosas características - e é precisamente esta generalização que se tem feito. Não toleraríamos tal generalização vinda duma Maria Vieira, dum André Ventura ou dum José Pinto Coelho, mas andamos a ser ávidos porta-vozes dela.
Daqui até à caça às bruxas bastou um saltinho. Nas redes sociais, entre o desabafo e a petição pública, foram numerosos os portugueses que proclamaram ordens de expulsão para os brasileiros que cá votaram em Bolsonaro. Isto tresanda a lex talionis, com esta curiosa agravante: sermos insensíveis com aqueles que acusamos de falta de sensibilidade eleitoral. O caso mais grave deste desejo de despejo terá partido da Margarida Martins, presidente duma Junta de Freguesia lisboeta onde residem cerca de 1.700 brasileiros.
“Brasileiros que votaram em Bolsonaro devem voltar ao Brasil” – escreveu ela no Facebook. Mais tarde apagou o post e asseverou que tinha sido um lapso. Acredito no arrependimento da Margarida Martins, mas não deixa de provar o quão rapidamente nos desejamos no papel de justiceiros impiedosos – e neste caso para punir um povo que elegeu um justiceiro impiedoso. Queremos sentenças irracionais para o grupo que, segundo nós, votou irracionalmente.
É grave quando as nossas melhores intenções desembocam nas piores intenções. O caso da Margarida Martins é tão ou mais flagrante tendo em conta o que foi, por exemplo, o recente esforço institucional dela para alojar migrantes. Um esforço louvável, na minha perspectiva. Mas será que a Margarida aceitaria importar refugiados depois de lhes conhecer as tendências políticas? Um foragido que não se importasse de ver implementada a Xaria em Portugal seria interditado? Um sírio favorável a uma teocracia absolutista seria bem-vindo a Arroios? Talvez sim, talvez não, talvez nada merecesse post no Facebook.
Esta cegueira primeiromundista dá razão àqueles simplórios que acham que “altruísmo” é sinónimo de “altivez”.
Recomendações cinematográficas para a noite de hoje
Torno a recordar alguns filmes de terror recentes (última década) que me causaram boa impressão. Vou recordá-los brevemente, e classifica-los com uma escala de estrelas irregular. Assim, de rajada, são estes que me vêm à memória:
“Deixa-me entrar” (2008) de Tomas Alfredson ✭✭✭✩✩
É importante salientar que este filme de vampiros pré-adolescentes surgiu na época de euforia dos vampiros adolescentes da série “Crepúsculo”. Funciona então como um contraponto gélido para a pornografia teen pipoqueira da saga “Twilight” (mesmo que se esteja a marimbar para a tendência). É um filme com contenção escandinava típica (às vezes, de enregelado, até parece padecer de alguma rigidez), o que lhe permite explorar as simbologias e os subtextos da temática vampírica duma forma completamente diferente, até desabonada. Não é como se Bergman fizesse um filme de terror, mas pelo dosear da acção, pela desolação, pela circunspeção, é o mais próximo que estamos disso.
“Eu vi o Diabo” (2008) de Kim Ji-woon ✭✭✭✭✩
Este filme não é um soco no estômago - é um murro demasiado potente para ser chamado “soco”, e uma víscera demasiado interior para ser chamada estômago. Tudo aquilo que torna o torture porn intolerável no cinema ocidental, em “Eu vi o Diabo” torna-se essencial, torna-se reflexivo. É como se, por intermédio duma ficção, percebêssemos a custo que quem lê frases da direita para esquerda aborda a vida da direita para esquerda – não é que este seja um filme sobre o sentido da vida, mas é um filme sobre o sentido da agonia, dor que faz sentido. “Eu vi o Diabo” prova que a inventividade da Coreia do Sul traz-nos mais do que um pastiche estilizado da cultura do Ocidente. O país do K-pop a milhas do K-pop.
“ETs in da bairro” (2011) de Joe Kornish ✭✭✭✩✩
Antes de mais, este é um sério candidato a pior tradução para português dum título de filme neste século. Faz lembrar aqueles pais que usam maneiras patetas de parecer jovens, e anunciam gestos do hip hop mas acabam por imitar o Pedro Abrunhosa em 1994. “Ets in da bairro” é título risível, mas o filme (“Attack the block”) tem graça nada embaraçosa.
Talvez seja um esticão chamar “terror” a esta amálgama de acção, humor e ficção científica, mas não deixa de se inscrever no género da invasão extra-terrestre, classicamente conotado com o terror.
É um bocado ingrato dissecar um filme que prima pela diversão despretensiosa. Contém crítica social e até uma lição moral, mas não estende panfletos. É uma produção britânica de orçamento moderado, muito bem escrita, razoavelmente dirigida e capaz de dar uma lição às grandes máquinas hollywoodenses.
“Foge” (2017) de Jordan Peele ✭✭✩✩
Muito se tem falado desta estreia na cadeira de realizador do actor e comediante Jordan Peele. “Foge” recebeu aplausos generalizados, e foi ainda empolado com as nomeações para os Oscar em categorias importantes (venceu mesmo a estatueta para o melhor argumento original).
Tornou-se um filme sobejamente conhecido, por isso poupo a descrição e os louvores e dedico-me a pôr água na fervura: “Foge” não é assim tão genial. A execução não tem grandes pontos de destaque, a história desemboca em fórmulas pouco surpreendentes, a banalidade substitui a complexidade, e a análise social pretendida não é refinada - demasiado descarada para que mereça reflexão. Posto isto, diabos me levem se este não é um dos filmes que mais entreteve no ano passado, a fita ligeira mais imersiva dos últimos meses.
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