1. Sobrinha
Olhemos com atenção para a palavra na nossa própria língua. É como «farinha», «cozinha» e outras quantas palavras: parece um diminutivo, mas não é (vem do latim «sōbrīna»). Só que, neste caso, o «inha» de «sobrinha», não sendo um diminutivo, mantém o ar de carinho… Será que, quando queremos mesmo amaciar a palavra, dizemos «sobrinhinha»? Raramente – que este «nh» parece não gostar muito de repetições… Enfim, a língua lá nos dá outras ferramentas: «a minha linda sobrinha», por exemplo.
A nossa carripana imaginária avança pela península. Já passámos Vilar Formoso. Já passámos Salamanca – a paragem valeu bem a pena. Estamos na zona de Burgos, mas não paramos, que se faz tarde. Percebemos, no entanto, que, por estas paragens bem castelhanas, a palavra se diz...
2. Sobrina
Ou seja, a língua vizinha obriga os seus falantes a abrir mais as vogais e, chegados ao princípio da última sílaba, descem um pouco a língua em comparação com o som à portuguesa. Experimente o leitor: a diferença entre «nh» – ou «ñ» – e «n» é a posição da língua em relação aos dentes. O «nh» é palatal, ou seja, a língua encosta-se ao palato, lá bem em cima. Já o «n» encosta a língua aos dentes. Sim, os sons da língua não são letras: são vibrações do ar ao passar pelos órgãos na garganta e na boca – a maneira como posicionamos esses órgãos é que origina as diferenças de som necessárias para criar frases com algum sentido…
As letras são rabiscos para prender as palavras ao papel. Ora, por não haver o tal som palatal «nh» no latim, as línguas que dele descendem tiveram de se arranjar sozinhas ao passar os sons para a escrita: nós enfiámos ali um «h» para obrigar a língua a subir; os franceses têm o «gn»; já os espanhóis duplicaram o «n» – com o tempo, o segundo «n» começou a ser escrito por cima do primeiro até se transformar numa pequena onda que nós conhecemos como til. Foi assim que nasceu essa letra tão espanhola: o «ñ» – letra que, como vimos, não existe em «sobrina». A língua desce, pois então.
A língua desce e nós subimos pelo mapa – já chegámos ao coração do território onde se fala o basco. Por estes lados, a palavra «sobrinho» não tem género: tanto se dá que seja um rapaz ou uma rapariga. É assim:
3. Iloba
A palavra, em basco, não tem género, mas tem muitos casos. Muitos portugueses encontraram-nos quando aprenderam latim ou alemão. Aliás, a nossa língua ainda conserva vestígios dos casos latinos nos pronomes. Nas frases «Eu pinto-o.» e «Ele pinta-me.», o «eu» está no nominativo na primeira e no acusativo na segunda. A palavra muda dependendo da função sintáctica que ocupa na frase.
Ou seja, línguas com casos há muitas. Mas o basco… O basco é outra coisa: tem 16 casos! Ou seja, cada palavra tem várias formas dependendo da função sintáctica que ocupa na frase. «Sobrinha», em basco, pode ser «iloba» (absolutivo indefinido), mas também pode ser «ilobengatik» (causativo plural) ou ainda «ilobarengana» (alativo singular) ou «ilobentzat» (benefactivo plural), entre muitas outras formas.
Por esta altura, o leitor deve estar aflito, a querer respirar nas águas conhecidas das línguas latinas. Pois, faço-lhe a vontade: chegámos, depois de passar a fronteira, à França. Ainda teremos algum território de língua basca, mas poucos quilómetros depois deixamos essa língua para trás. Mas não pensemos já na famosíssima língua francesa. A França é um país bem menos uniforme do que nos querem fazer crer. No que toca às línguas, temos também, por exemplo, o occitano, língua bem conhecida do tempo dos trovadores – e a língua, aliás, em que escrevia um dos primeiros galardoados com o Prémio Nobel da Literatura: Frédéric Mistral.
Talvez se lembre de ouvir falar nas aulas de francês das «langues d’oc»… Sim, é a língua – ou grupo de línguas –, a que também podemos chamar occitano (o tal «oc» está no início: é a palavra para «sim»). Pois, em occitano, «sobrinha» diz-se assim:
4. Neboda
Diga-se que esta «neboda» occitana (o masculino é «nebot») aparece também no catalão. Para quem fica confundido com essa língua e ora diz que parece castelhano sem algumas letras ou francês à espanhola, fique portanto a saber: a língua mais próxima do catalão é o occitano. Será por muito pouco que não podemos dizer que o catalão é uma das «langues d’oc»…
Nesta viagem imaginária até Cambridge, temos uma catrefada de quilómetros para fazer no território da língua francesa, onde a palavra se escreve...
5. Nièce
Depois, claro, chegamos ao Canal da Mancha, onde veremos, do outro lado, a brancura das falésias de Dover – isto se não nos enfiarmos num comboio que passa por baixo do mar.
Embora o que me tenha trazido aqui tenha sido a palavra «sobrinha», não posso deixar de pensar na maneira como há palavras que evocam imagens, poemas, certas ideias fugidias – mas só numa certa língua… Se eu disser «Falésias de Dover», estarei a dizer muito pouco. Se eu disser «Cliffs of Dover», estarei a dizer muito mais. Não me alongo nestes pensamentos, certamente provocados pelas brumas da Mancha a rodearem-me a cabeça, enquanto espero a chegada à ilha. Peço apenas que o leitor guarde a palavra francesa na cabeça: «nièce». É que, na escrita, é mesmo parecida com a prima inglesa:
6. Niece
Ora, a minha sobrinha, em inglês, é «my niece». Donde vem esta palavra? Diz-nos a etimologia que a palavra, andando para trás no tempo, vem de «nece» no inglês médio, que, por sua vez, veio do «nece» do francês antigo, que, por sua vez, tinha vindo do latim vulgar «*neptia» – palavra essa que foi beber à forma indo-europeia «*nepot-».
O tal francês antigo veio substituir no inglês a forma germânica «nifte» – o inglês é uma língua germânica invadida sem dó nem piedade por vocabulário à latina. Esta invasão aconteceu de várias maneiras – uma delas foi o prestígio do francês normando durante bastante tempo. Os nobres falavam francês e o povo falava inglês, sem ninguém que cuidasse de tal língua. Ninguém cuidou da língua, e ela aproveitou para saltitar pelo tempo, mudando sem vergonha e engolindo palavras sem pudor. No fim, quando o inglês se tornou a língua da corte, era uma língua bem mudada, bem redondinha, com muitas palavras latinas no bucho.
Às vezes entretenho-me a pensar: nesses séculos em que o inglês era apenas o falar do povo e alguém que quisesse ser alguém tinha de falar francês, se chegássemos ao pé dum camponês ali como quem vai para Essex e lhe disséssemos que o seu linguajar viria a ser ensinado até nas escolas de França, o homem não acreditaria. Que nos sirva de lição: ninguém faz a mínima ideia de qual será a paisagem linguística daqui a uns 700 anos. O mais desprezado dos dialectos pode vir a ser a grande língua do futuro.
Enfim, aconteça o que acontecer no futuro, hoje é dia de dar os parabéns à minha sobrinha, ou sobrina, ou iloba, ou neboda, ou, com mais acento ou menos acento, à minha niece.
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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